[Artigo] A Formação de uma Consciência Coletiva de Resguardo aos Direitos Indisponíveis
Leandro Martins Müller1
Emily Nunes Teles2
A história do direito do trabalho confunde-se com a própria história dos direitos sociais, desde o arremesso de tamancos nas máquinas de produção como protesto e exercício da força coletiva, até a positivação dos direitos sociais nas cartas políticas pelos Estados que passaram a legitimar o viés de bem-estar social.
Portanto, o direito do trabalho abrolha e se desenvolve como garantidor de condições de trabalho compatíveis para com a dignidade da pessoa humana frente à exploração da mão-de-obra pelo capital.
A força do capital, na condição de sistema regente, exerce indubitável influência nas relações sociais, perpassando a existência individual humana para além do domínio financeiro. O tecido social como um todo recebe a influência do sistema, seja para ditar os meios de subsistência, as políticas públicas, a cultura ou a forma como se estabelecem as relações em determinado espaço e tempo.
Nos últimos anos, os avanços da neurociência permitiram concluir pela incapacidade do indivíduo de superar o seu meio, mesmo para os pequenos grupos, traduzindo-se em um possível conceito de hiper ou hipossuficiência ao se admitir, nas relações sociais ou jurídicas, uma manifesta disparidade de poder para além da perspectiva econômica.
Nesse viés, os direitos sociais são tomados como direitos fundamentais de segunda geração e, portanto, não admitem quaisquer supressões ou alterações que não para ampliar o seu rol a partir da concepção de melhoria das condições sociais dos trabalhadores.
Consequentemente, tendo a Constituição como um vetor axiológico normativo vinculante, os direitos sociais passam a irradiar princípios que vinculam a hermenêutica processual, no novo paradigma de constitucionalização do direito.
Muito além de prestigiar a dignidade da pessoa humana, no seu sentido stricto sensu, o direito do trabalho vem resguardar a segurança e a saúde do trabalhador através da melhoria do ambiente de trabalho com a sua regulação baseada em critérios científicos e técnicos.
Disso, de substancial importância, o Movimento Abril Verde chama à cautela a relevância de se instituir uma cultura de segurança e saúde no trabalho, chamando, também, à reflexão de qual consciência coletiva se quer construir tomando-se os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana para garantir a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Dessas considerações, destaca-se a limitação da jornada de trabalho, a qual surgiu não apenas como perímetro à exploração da força de trabalho, mas, em última análise, como medida de segurança, impedindo a fadiga, responsável significativamente pelos acidentes de trabalho que ocorrem, preponderantemente, em prorrogação de jornada.
Nessa perspectiva, não se pode olvidar que a construção de precedentes pelo Poder Judiciário deve, igualmente, adotar o viés de constitucionalização do direito do trabalho, a fim de dar a máxima efetividade aos direitos sociais.
Posto isso, recentemente a Suprema Corte, reconhecendo a repercussão geral do Tema 1046, firmou a tese de que são constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.
Tal tese tem suscitado possíveis equívocos em sua aplicação no exercício da jurisdição, especialmente pela nebulosa interpretação da parte final, isto é, o respeito aos direitos absolutamente indisponíveis.
Atualmente, são inúmeras as normas coletivas permitindo a prorrogação de jornada em ambientes insalubres sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho, valendo-se tanto da tese mencionada, quanto da nova disposição instituída pela Lei nº 14.467/17, a famigerada Reforma Trabalhista, que, a todo modo, manifesta-se possivelmente inconstitucional.
No caso, parece não ser passível de negociação coletiva a dispensa de autorização da autoridade competente para jornada em ambiente insalubre, pois se cuida de direito fundamental à saúde e a segurança do trabalhador, bem como do direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas.
Nessa senda, tem-se o voto condutor do Ministro Gilmar Mendes, nos autos do landing case do tema supracitado, o qual balizou que os limites da negociação coletiva estão contidos na própria jurisprudência consolidada do STF e do TST em torno do tema, o que inclui o firmado na Súmula n.º 85, inc. VI, da Corte Superior do Trabalho (expressamente mencionada no voto).
Aliás, entre as três balizas fixadas pelo Ministro, encontra-se, justamente, a de “disponibilidade ampla dos direitos trabalhistas em normas coletivas, resguardado o patamar mínimo civilizatório”, onde esse incluiu o respeito aos direitos absolutamente indisponíveis e constitucionalmente assegurados.
Para a fixação dessa baliza, o Ministro Gilmar Mendes estabeleceu que as cláusulas de convenção ou acordo coletivo não podem ferir um patamar civilizatório mínimo, composto, em linhas gerais, por: normas constitucionais; normas de tratados e convenções internacionais incorporadas ao Direito Brasileiro; normas que, mesmo infraconstitucionais, asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores.
Em complemento, buscando-se subterfúgio na jurisprudência da Suprema Corte, tem-se o voto da Ministra Rosa Weber na Rcl n.º 50845 e o entendimento do Ministro Roberto Barroso em seu voto no REX n.º 590.415/SC, no qual afirma que, embora o critério definidor de quais sejam as parcelas de indisponibilidade absoluta seja vago, afirma-se que estão protegidos contra a negociação in pejus os direitos que correspondam a um “patamar civilizatório mínimo”, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário-mínimo, o repouso semanal remunerado as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc.
Portanto, qualquer norma coletiva que dispense o estabelecido no art. 60 da CLT pode representar afronta a tese de repercussão geral fixada no Tema 1.046, sendo, ainda, possivelmente inconstitucional, pelos mesmos argumentos, o art. 611-A, inc. XIII, da CLT.
Há de se ponderar, ademais, que a segurança, em sentido lato, tem tratamento constitucional e indisponível, conforme pode se depreender do voto da Ex-Ministra Ellen Gracie ao proferir seu voto no RE 559.646-AgR, no sentido de que “o direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço”.
Disso, parece não haver espaço para interpretar a dispensa de autorização da autoridade competente em prorrogação de jornada em ambiente insalubre como sendo um direito disponível, na medida em que o direito à segurança e à saúde do trabalhador são garantias fundamentais. Assim, as interpretações dissonantes, muitas vezes decorrente do automatismo e pressão do capital, parecem não atender ao novo paradigma de constitucionalização do direito.
Com essas ponderações, chama-se à reflexão de qual consciência coletiva se quer construir tomando-se os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana para garantir a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. O debate continua na audiência pública promovida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, nesta quinta-feira, 18/04 que inicia às 14h.
1Advogado Trabalhista especializando em Direito Processual. Contato: mm.advogado@outlook.com.br
2Advogada Trabalhista e Sindical, Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Coordenadora do Fórum Justiça – RS. Contato: Emilyteles.adv@gmail.com