ANADEP Entrevista – Juliana Belloque – defensora pública
INFORMATIVO da Associação Nacional dos Defensores Públicos
Nº 12 – 20 de julho de 2012
Juliana Belloque
Defensora pública em SP e integrante da comissão designada para elaborar o anteprojeto do novo Código Penal. Atua no Tribunal do Júri de São Paulo, é mestre e doutora em processo penal pela USP, ex-diretora da ANADEP e ex-presidente da APADEP.
«É fundamental o olhar da Defensoria Pública em reformas legais desta envergadura”, afirma. Para elaborar o anteprojeto, o grupo de 15 juristas de notório conhecimento – liderado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp – realizou audiências públicas e examinou mais de seis mil sugestões recebidas por meio dos canais de atendimento do Senado. Foram mais de sete meses de trabalhos para tornar o Código compatível com as necessidades dos dias atuais e ainda voltado para o futuro. Para Juliana Belloque, essas mudanças deverão afetar o trabalho dos defensores públicos.
Os crimes descritos no novo Código Penal vão do homicídio à violação de correspondência, da difamação ao sequestro, entre tantos outros, agora descritos em mais de 500 artigos, superando os 356 da legislação atual, em vigor desde 1940. A maior quantidade de normas decorre da incorporação de leis que abordam temas penais de forma autônoma, entre elas, as de drogas e da lavagem de dinheiro. Também foram incorporados o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e dos Adolescentes.
Agora a proposta será convertida em projeto de lei e começará a ser analisada pelos senadores na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). O presidente da CCJ, senador Eunício Oliveira (PMDB-CE), pretende colocar o tema em discussão em agosto, após o recesso parlamentar. Pelo regimento, o projeto deve passar pelo exame de uma comissão especial de senadores, seguindo depois a Plenário. Para ser convertida em lei, a proposta deve ainda ser submetida à Câmara dos Deputados e receber sanção presidencial.
Novo Código Penal
ANADEP –
Qual a importância da visão jurídica do defensor público na elaboração do novo Código Penal?
Juliana Belloque – É fundamental o olhar da Defensoria Pública em reformas legais desta envergadura. Mesmo que com a participação de excelentes advogados nas comissões, a ótica de como a justiça criminal afeta a população pobre no país é praticamente exclusiva da Defensoria. Quando pensamos que são pouquíssimos os crimes que geram a massa de encarcerados no Brasil, e todos eles estão relacionados à faixa de pobreza, é irresponsável alterar o Código penal sem a participação de defensores públicos neste processo político.
ANADEP – Quais foram os pontos mais polêmicos alterados?
Juliana Belloque – Um código de condutas datado de 1940 exige ampla reformulação pela enorme diferença dos padrões sociais atuais e os presentes naquela época.
ANADEP – Por que a comissão decidiu propor a descriminalização das drogas para uso pessoal?
Juliana Belloque – É já tradicional no direito penal a não criminalização de condutas que não ultrapassam o âmbito das escolhas individuais no plano da vida privada. As autolesões, como a própria tentativa de suicídio, não são consideradas como criminosas. A legitimidade da punição exige a violação aos direitos de terceiros. A punição do usuário de drogas precisa ser inserida nesta perspectiva e encarada no plano da saúde pública, com investimento em educação e tratamento. A punição do usuário apenas gera um estigma que dificulta a intervenção positiva do Estado nas outras esferas de políticas públicas. Por outro lado, o modelo atual de repressão às drogas já se mostrou ineficiente.
ANADEP – A aceitação de quantidade apreendida equivalente ao consumo individual para até 5 dias não poderá significar o porte grande de drogas servindo para proteger os traficantes?
Juliana Belloque – A entrega ou venda de qualquer quantidade de droga, mesmo que ínfima, continua sendo crime de tráfico. O critério da quantidade apenas atua quando a autoridade apreende droga que estava sendo guardada ou transportada, sem indicativo claro de que era destinada ao tráfico. Trata-se de só mais um critério, que busca objetivar um pouco a difícil tarefa do juiz de distinção do usuário e do traficante. O magistrado ainda deverá considerar a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias pessoais do agente e do local, dentre outras. O que percebemos claramente hoje é o encarceramento, que só aumenta, de pessoas que são encontradas com pouca quantidade de droga. Ainda se confunde muito o usuário com o traficante, isso precisa ser evitado.
ANADEP – Também será criminalizado o «bullying», com pena de 1 a 4 anos e multa, bem como a atitude de perseguição obsessiva, com pena de 2 a 6 meses e multa. Por que crimes tão semelhantes com essa diferença com relação à aplicação das penas?
Juliana Belloque – A perseguição obsessiva, chamada de stalking pelos americanos, é conduta muito mais grave, inclui uma situação de grave ameaça exercida contra a vítima. Aqui não se protege só a honra, a intimidade, a tranquilidade, mas essencialmente a integridade física da vítima. Eu fui pessoalmente contra a criminalização do bullying, prática comum entre crianças e adolescentes, que não podem ser punidos pelo direito criminal. A questão deve ser resolvida, no meu modo de ver, no âmbito da educação, em casa e nas escolas.
ANADEP -No caso do aborto, a comissão admitiu ainda a interrupção da gravidez até a 12ª semana se comprovadamente faltar condições psicológicas à mulher para levar a gravidez adiante. Essa norma será bem recebida pelos parlamentares e pela sociedade?
Juliana Belloque – A sociedade brasileira e, em consequência, o Parlamento, tem a obrigação de travar debate público sobre esse tema de modo sereno e sem cóleras com fundo religioso. Não se podem fechar os olhos para a realidade brasileira, na qual a morte por abortos inseguros é uma das principais causas de mortalidade materna. A restrição excessiva ao aborto legal tem gerado mortes de mulheres em número inaceitável. Questionar a punição criminal ao aborto é também proteger a vida. Quando a sociedade entender que descriminalizar não significa fomentar condutas, estará mais aparelhada para discutir o assunto. Em vários países nos quais houve a descriminalização, pesquisas apontam para a redução das taxas de aborto, as mulheres são acolhidas pelo sistema de saúde, orientadas sobre planejamento familiar, e não voltam à prática. A proteção à vida passa pelo desenvolvimento de políticas de planejamento familiar eficientes por parte do Estado.
ANADEP – Quais outras inovações são propostas pelo anteprojeto?
Juliana Belloque – Reputo muito importantes as alterações nos crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça. O projeto vai no sentido do desencarceramento, sem descriminalização. Os crimes de furto, apropriação indébita e estelionato passam a depender de representação da vítima e o processo é extinto sem julgamento de mérito se há eficaz reparação do dano com a sua aceitação. O objetivo é dar maior importância aos interesses do ofendido, valorizando a sua posição no processo, e evitar o cárcere para pessoas que não são perigosas ao convívio social. Hoje são 65 mil pessoas presas por furto no país, número inaceitável.
ANADEP – Como o novo código trata a questão das penas alternativas? Quais mudanças foram propostas?
Juliana Belloque – As penas restritivas de direitos já são bem disciplinadas, o problema atual é de aplicação da lei. Significativa mudança é a previsão de possibilidade de penas restritivas para crimes praticados com violência ou grave ameaça, ou seja, quando a pena não ultrapassar dois anos. Esta espécie de punição precisa ser ampliada.
ANADEP – Os crimes praticados pela internet também serão tipificados?
Juliana Belloque – Sim, eles ganharam um capítulo próprio.
ANADEP – Quais mudanças poderão afetar mais o trabalho dos defensores públicos da área penal?
Juliana Belloque – Especialmente as mudanças nos crimes patrimoniais e também a possibilidade de barganha, acordo entre réu, defesa e acusação no início do procedimento, dispensando-se a instrução e aplicando-se a pena mínima com redução de 1/3, sem causas de aumento ou agravantes eventualmente incidentes.
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