[Pessoas Privadas de Liberdade] O "Direito Penal do Amigo do Poder"
Data: 26 de junho de 2011
«Existe um discurso alarmista e falacioso (e bem ao agrado das elites, como veremos mais abaixo) de que se deixarmos de punir criminalmente as pequenas infrações, ocorrerá o caos. Como se todas as pessoas deixassem de cometer furtos somente por causa da lei penal. Que se deixarmos de denunciar criminalmente os crimes insignificantes, haverá uma verdadeira corrida de saques aos supermercados e de danos ao patrimônio.»
Há uns dias, absolvi sumária e extemporaneamente (vide aqui o que significa) um jovem miserável e dependente químico que teria furtado uma peça do compressor de uma geladeira. Valor do bem: R$ 50,00. A peça foi devidamente restituída, e na denúncia se reconhecia que a causa do furto tinha sido a dependência química do acusado. Mesmo assim, não foi pedida a aplicação de medida de segurança (clique aqui).
Dias depois, minha assistente chamou a atenção para o fato de que um dos promotores de justiça da chamada «Central de Inquéritos» apelou da decisão. É que aqui, antes do recebimento da denúncia, quem atua é uma equipe de parquets dedicada somente a essa fase da investigação, e não o promotor titular da Vara.
Na manhã seguinte, recebi um convite para ser palestrante no seminário «Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública e os Crimes Dolosos Contra a Vida», promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP – em parceria com o Ministério Público do Rio Grande do Norte – MPRN. Pensei sobre o que iria dizer acerca da realidade do nosso sistema penal e quais as estratégias que teríamos que adotar para enfrentarmos esse problema. E a solução passa pelo modo com que lidamos com crimes como o do furto acima.
A impunidade nos crimes dolosos contra a vida no Brasil é gritante. Somente na Zona Norte de Natal, onde atuo, há 300 homicídios impunes. Muitos desses inquéritos há mais de dez anos sem conclusão. De outro lado, a prática que vejo é de atuação focada nos crimes contra o patrimônio, em não raros casos, situações até pitorescas, cuja atipicidade já está há muito pacificada nos tribunais superiores. Só para exemplificar, nos últimos tempos rejeitei denúncias ou absolvi sumariamente (extemporaneamente ou não) acusados em casos que tratavam de fatos como esses:
Furto de 02 latas de leite em pó no valor de R$ 15,98 – bens restituídos;
Furto tentado de dezessete calcinhas no valor individual de R$ 2,99 – bens restituídos;
Furto de uma galinha, quatro câmaras de ar, dois aros de bicicleta e um pneu de bicicleta (galinha e bens devolvidos) (clique aqui);
Furto mediante escalada de cinco cartões bancários (devolvidos) ;
Furto tentado de 22 barras de chocolate, num valor venal de R$ 98,50 – bens restituídos;
Furto tentado de dois quilos de carne de charque e uma lata de azeite de oliva, avaliados em R$ 42,90;
Porte ilegal de uma munição percutida e não deflagrada ;
Porte ilegal de uma munição .380, um coldre e um carregador vazio ;
Porte ilegal de três munições .38 ;
Receptação de um chip de celular e suspeita de mais oito ;
Dano qualificado pelo amasso de um portão de um posto de saúde );
Dano qualificado – arranhão em um orelhão da OI;
Dano qualificado – acusado que tentou fugir de cela superlotada;
Tentativa de furto de 5 desodorantes e um esmalte;
Tentativa de furto de R$ 37,00 ;
Furto qualificado tentado, pois o acusado foi encontrado dormindo embaixo de uma das mesas do salão, agarrado a um saco preto onde se encontravam duas garrafas de uísque, uma da marca Teacher e outra da Bells. O conteúdo «subtraído» (leia-se «tomado») foi avaliado em R$ 50,00 ;
Furto tentado de um botijão de água mineral vazio (o acusado apanhou da vítima, uma jovem senhora);
Furto tentado de 10 frascos de desodorante, no valor total de R$ 89,90, das Lojas Americanas;
Não dá para continuar esse estado de coisas. É preciso agir com planejamento. É tempo de (re)pensar a gestão e a estrutura dos órgãos de persecução penal e definir prioridades.
A norma penal deveria existir para a tutela de apenas alguns bens ou interesses cuja especial relevância justifique ser objeto de uma tão especial, grave e qualificada proteção, como é a penal. Mas o dia-a-dia demonstra o contrário. Os dados estatísticos do INFOPEN, do Ministério da Justiça, apontam para o seguinte quadro no sistema carcerário do RN (Dez. 2010):
Presos por crimes contra o patrimônio: 1.730
Presos por crimes contra a administração pública: 8
Presos por tortura: 1
Presos por corrupção ativa: 0
Como já alertei, há mais de 300 homicídios sem solução somente na Zona Norte de Natal. Há inúmeras denúncias de tortura, e mal se ouve falar de investigações em crimes contra a Administração Pública que, normalmente, lesam os cofres públicos em (bi)milhões de reais.
De outro tanto, praticamente não existe investigação. Os crimes que nos chegam são oriundos, quase exclusivamente, de prisões em flagrante. Para que o leitor tenha uma ideia, há quase um ano não há um pedido de interceptação telefônica na Vara em que atuo. Afinal, não se precisa disso para se por atrás das grades dependentes químicos que cometem pequenos furtos.
Forma-se um círculo vicioso. O Judiciário é pautado pelo Ministério Público, haja vista o princípio da inércia. O Ministério Público, via de regra, lida somente com os inquéritos que lhe chegam da polícia civil, geralmente flagrantes em pequenas infrações contra o patrimônio. A polícia civil, por sua vez, também não investiga. A maioria avassaladora de inquéritos termina sendo oriunda prisões em flagrante realizadas pela polícia militar. E essas prisões em flagrante, é claro, não atingem a corrupção, os crimes econômicos e de inteligência e nem casos complexos como homicídios sem autoria conhecida.
Banaliza-se o controle da criminalidade, notadamente em se tratando de crimes metaindividuais, que atingem o Estado ou toda a sociedade. Ficam livres aqueles que minam os recursos públicos que seriam utilizados para inclusão social dos mais carentes, estes últimos exatamente os alvos dos flagrantes policiais. Acabamos por punir os subintegrados ou subcidadãos (vide aqui o quesignifica).
No final das contas, quem tem o poder de dizer o que o Judiciário vai punir ou não é a polícia militar! Os Órgãos que deveriam tomar as rédeas do sistema penal andam a reboque. Por isso é tão importante pensar estrategicamente, eleger prioridades. E essas prioridades devem ter relação direta com a gravidade da infração, haja vista o impacto e a relevância dela. E acredito que a vida e a dignidade da pessoa, bem como os recursos públicos, são mais importantes que o patrimônio privado.
Existe um discurso alarmista e falacioso (e bem ao agrado das elites) de que se deixarmos de punir criminalmente as pequenas infrações, ocorrerá o caos. Como se todas as pessoas deixassem de cometer furtos somente por causa da lei penal. Que se deixarmos de denunciar criminalmente os crimes insignificantes, haverá uma verdadeira corrida de saques aos supermercados e de danos ao patrimônio. Esquecem que o sistema penal é somente mais um dos meios de controle social.
Se formos fazer uma pesquisa sobre os motivos pelos quais alguém não comete um furto, por exemplo, a maioria das pessoas dirá que é simplesmente porque é errado, feio ou pecado (moral) e não porque é crime (direito). O controle social mais eficaz reside na família, nos meios de comunicação, na escola e na igreja. O direito penal é residual e nem de longe tem o poder que se imagina ter de controle da sociedade.
Além disso, não esqueçamos que existe o direito civil e a consequente reparação do dano. Ficar inadimplente de um crediário, por exemplo, não é crime. É mero ilícito civil. E nem por isso todas as pessoas vivem inadimplentes. Não raras vezes a inserção do nome de quem cometeu um furto insignificante no SERASA, tem muito mais eficácia. A Parte Geral do CP, que é de 1940, e ainda aplicada acriticamente, não conhecia isso. Nessas pequenas infrações, os atores jurídicos precisam descobrir outros meios de tutela que não a penal ou a prisão, e dedicar seu tempo e os recursos insuficientes para o que realmente importa: crimes que violem de maneira grave os direitos fundamentais.
Dentro dessa visão criminalizadora míope surgem os importadores de teorias estrangeiras, construídas sob realidades sociais extremamente diferentes das nossas (notadamente em face da não superação, aqui, sequer do Estado Social). E dentre esses juristas colonizados, quais as teorias que vem logo à cabeça? A das «janelas quebradas» e a do «direito penal do inimigo».
A primeira reflete um paradigma já em desuso há muitos anos nos EUA e que previa que era punindo as pequenas infrações que se evitariam as grandes. Verificou-se que, na verdade, o bem-estar da economia americana é que influía na pequena criminalidade. Já a teoria do direito penal do inimigo partia do pressuposto da existência, na sociedade alemã, de alguém que não admite ingressar no Estado e assim não pode ter o tratamento destinado ao cidadão. Aqui no Brasil ocorre exatamente o contrário. A nossa luta ainda é de inclusão social de uma importante parcela dos nossos compatriotas que foi excluída à força. Resultado? Persecução penal focada nos crimes e criminosos menores.
Constrói-se, assim, o que chamo de «teoria do direito penal do amigo do poder». Isso porque se não temos capacidade de atuar em todos os casos e terminamos por punir apenas as pequenas infrações e pequenos infratores, fazemos, sem perceber, uma escolha perversa.
Nas profundezas desse discurso punitivo se esconde uma prática subjacente de impunidade dos poderosos, daqueles que se encontram próximos ao poder. Isso porque enquanto o Ministério Público dedica seu tempo a essa demanda pequena, os grandes criminosos aplaudem, incólumes. Regozijam-se. Deixamos com pouca efetividade o combate à corrupção, com prejuízos anuais estimados em 69 bilhões de reais/ano (vide aqui), dinheiro esse de origem pública, isto é, de todos. Dinheiro que seria usado para diminuir nossa gritante desigualdade social. Incluir gente.
Temos que separar o joio do trigo, estabelecer prioridades. Ou continuaremos nesse abraço de afogados. Isso não é racional.
Aos adoradores inconscientes do «direito penal do amigo do poder», um alerta: você está sendo usado como inseticida social. Justiça? Ah! É só um detalhe nessa máquina louca.
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD