Fórum Justiça

A questão Indígena e a Ditadura Civil-Militar: Entrevistas com Missionários que se Colocaram ao lado da Causa Indígena e dos Povos Originários

08/03/2021
Democratização do Sistema de JustiçaTerritórios

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O Fórum Justiça (FJ) no Rio Grande do Sul, junto com representantes indígenas e organizações indígenas e indigenistas apresentou denúncia ao Ministério Público Federal sobre violações que os povos Kaingang e Guarani sofreram durante a Ditadura Civil-Militar. Esta denúncia virou o Procedimento PR-RS- 0011942-2019. Um olhar sobre o que aconteceu naquele período é dos missionários que se colocaram ao lado da causa e dos povos originários. O FJ, então, realizou uma série de entrevistas[1] para compartilhar este olhar com a sociedade e fomentar o debate para que nunca mais se repitam os crimes e erros ocorridos naquela época, que trazem reflexo aos dias de hoje e ainda necessitam de reparação.

A primeira entrevista desta série foi realizada com o indigenista Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário.

Fórum Justiça– Qual o impacto do Concilio Vaticano II (1965), da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Medellín, Colômbia (1968) e do Encontro Presença da Igreja nas Populações Indígenas, organizado pela CNBB à época, para mudança de rumos na relação de missionários junto aos povos indígenas?

Egydio: – Quando se realizou o Concílio Vaticano II, eu era estudante jesuíta na UNISINOS. A gente vibrava com as novidades que os documentos do Concílio traziam. Nossas discussões giravam diariamente em torno dessas novidades: Igreja: é Povo de Deus, não mera instituição hierárquica. Missão: não doutrinação, mas “busquem os missionários colher as sementes do Verbo ocultas nos povos” (Ad Gentes 11). Ecumenismo: diálogo e respeito com o diferente: culturas, credos…; Alegria e Esperança: encarnação na realidade das populações marginalizadas, animando-as na luta pela conquista dos seus direitos, etc. Em meio a este fervilhar na Igreja, escrevi ao Geral da Ordem, para que me deixasse partir para alguma missão entre as populações mais necessitadas do mundo (Os superiores regionais já me haviam destinado para continuar estudos universitários, obviamente para preencher as lacunas de seus colégios e universidades). E foi o Geral da Ordem quem me sugeriu ir aos indígenas. Não perdi tempo. Terminado o meu curso de Filosofia, ainda como estudante jesuíta, fui trabalhar três anos em dois internatos indígenas na Missão Anchieta, no Noroeste de Mato Grosso. Ali senti, mais forte, a necessidade de mudar a política indigenista da Igreja, junto aos indígenas no rumo apontado pelo Concílio Vaticano II. E neste trabalho empenhei a minha vida até hoje: ao lado dos índios, na luta por justiça e pelos seus direitos. Esse impacto do Concilio foi vivido em muitos seminários e paróquias da época, abrindo novos horizontes a muitas vocações jovens, rumo ao Povo de Deus.

A Conferência de Medellín, com relação aos povos indígenas, foi uma decepção. Sequer tratou do assunto. E a CNBB, em 1967, convocou uma reunião sobre “desobriga”, (pastoral tradicional com os não-indígenas da Amazônia.) Os missionários indigenistas se sentiram marginalizados. Diante das reclamações, o Secretariado Nacional de Atividade Missionária-SNAM da CNBB convocou a reunião de missionários indigenistas, realizada em Morumbi 02/1968. Quando recebi o convite para participar da reunião, cursava Teologia e estava retornando das férias, passadas em atividades no Rio Arinos/MT. E vinha sobre um forte impacto: No rio Arinos, topei com os índios Tapayuna, se apresentando pacíficos na margem do rio, após anos de agressividade. Os PP Adalberto Pereira, sj e Antonio Iasi sj, por pouco, não perderam a vida em tentativas de contato com este povo. Agora se apresentavam pacíficos e ninguém ia ao seu encontro para prevenir contatos indiscriminados que anunciavam o desastre que se seguiu. Pe. Adalberto estava impedido por problemas de saúde e os superiores da Missão, diziam que não tinham outro. Diante da urgência, me ofereci, disposto a interromper a Teologia. Mas fui impedido pelos superiores, o que doeu fundo na minha consciência. Havia necessidade de questionar o voto de Obediência. Em Morumbi, presenciei fortes discussões sobre o assunto. Uma delas, entre um salesiano e um dominicano, me projetou luz sobre como enfrentar futuras situações. Em meio a uma acalorada discussão, o Salesiano, professor de universidade, esbravejou: “E onde fica então, a nossa obediência religiosa?” E o franzino Dominicano, missionário no Araguaia, respondeu: “Obediência, sim, mas obediência criativa!” Me lembrei do Pedro que há 2.000 anos escreveu: “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens.” Havia necessidade de mudanças radicais na rotina missionaria da Igreja.

De volta em São Leopoldo, na Teologia, discutimos muito o assunto e no ano seguinte, Thomaz voltou à Missão em Mato Grosso, onde fechou o internato de Utiariti e eu criei no Sul a OPAN-Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa garantindo duas perspectivas novas para a política indigenista da Igreja do Brasil. A primeira inaugurou um novo modelo de presença missionaria, não doutrinação, mas encarnação nas aldeias. A segunda garantiu novas forças, o vinho novo, para os odres novos que surgiam, agora com presença criativa, ágil, sem fronteiras políticas ou eclesiásticas e encarnada na realidade dos povos indígenas, esfacelados por todo o território brasileiro.

Fórum Justiça– O livro Os Fuzis e as Flechas, de Rubens Valente, relata que uma equipe volante do CIMI, entre 1974 e 1975, coletou muitas denúncias de violações aos direitos dos povos indígenas, o que poderia destacar?

Egydio – Quando estava escrevendo seu livro, Rubens Valente me procurou e fez uma longa entrevista sobre minha caminhada de vida. Aqui entrevistou trabalhadores que abriram a picada da BR-174, pelo território Waimiri-Atroari, onde testemunharam as violências dos militares contra esses índios.

Quando fui Coordenador Técnico da OPAN e Secretário Executivo do CIMI, – entre 1969 e 1980 – a equipe do Secretariado andou muito pelos interiores do Brasil, buscando ver a situação aflitiva dos remanescentes indígenas, as violências sofridas. Encaminhamos denúncias ao Governo e à Imprensa durante o Governo Militar. Denunciamos a invasão do Parque Nacional do Xingu, por campos de pouso e pela BR-80(1973); elaboramos o “Y YUCA PIRAMA”, documento que contém inúmeras denúncias das violências sofridas pelos índios; denunciamos madeireiras e latifúndios que se apropriavam, fora da lei, de terras indígenas no Sul, no Leste, no Centro-Oeste, no Norte e no Nordeste; a omissão da FUNAI na garantia do patrimônio indígena; encaminhamos propostas de áreas continuas para os  Ticuna e Kokama do Aldo Solimões, para os Yanomami, para os índios Makuxi, Wapitxana, Ingarikó e Taurepang em Roraima; como tambem denunciamos a situação aflitiva que viviam os índios Kaingang e Guarani em todo o Sul do Brasil e os Kaiowa-Guarani do Mato Grosso do Sul…

Durante a Ditadura Militar rodovias violaram os territórios indígenas, como se estas fossem “vazios demográficos”, alienando-os para empresários e políticos sulistas. São deste período, a construção da Transamazônica, da Cuiabá-Santarem, da BR-174, Manaus-Boa Vista da Perimetral Norte, todas, rodovias que violaram territórios indígenas. Construíram-se hidrelétricas que inundaram seus territórios, não apenas na Amazônia, Parakanã, mas por todo o país, Nordeste, Tuxá de Rodelas, no São Francisco, no Sul, Xokleng do rio Itajaí…

Fórum Justiça– Entregaste, em fevereiro de 1975, um relatório ao General Ismarth sobre os Kaingang estarem sendo usados como mão de obra barata pela FUNAI. No que consistia esta denúncia? Esta realidade vivida pelos Kaingang poderia ser descrita como trabalho análogo a escravo, nos termos do artigo 1491, do Código Penal?

Egydio – Durante a Ditadura Militar os militares aproveitaram diversas áreas indígenas, principalmente no Sul, a dos Kaingang, para a produção de grãos, tanto pela FUNAI, como por agronegociantes, valendo-se da mão de obra dos índios que acabavam sendo escravizados sobre sua própria terra. Produziam para o órgão oficial e fazendeiros, sem verem jamais o lucro. A FUNAI não atendia às mossas denúncias por isso a gente recorria na época à Imprensa. Os indígenas que resistiam sofriam violência ou eram assassinados. A floresta que restava da depredação do SPI-Serviço de Proteção aos Indios nas áreas indígenas do Sul, voltou a ser alvo de exploração. Quem se opunha era perseguido ou morto. Foi o caso do líder Ángelo Kretã, de Mangueirinha/Paraná que se lutou contra a destruição do ultimo pinhal nativo que ainda restava. Um mês antes do seu assassinato, tomando chimarrão com Kretã, ele me relatou as ameaças que sofria. Foi tambem o que aconteceu a Marçal de Souza,Tupã-y, líder Guarany do Mato Grosso do Sul, que o contundente discurso diante ao Papa João Paulo II, em Manaus. O meu relatório fez ainda referencia à situação dos índios Guarani de Rio das Cobras/PR. Guardo carta do Pe. Guido, vigário de Laranjeiras do Sul, daqueles dias: “A terra dos índios Guarani lá do Rio das Cobras se foi quase toda. Os jagunços das firmas andam por lá. Acho que se continuar assim… dentro de um ano, não teremos mais Guarani. Diversas famílias Guarani, não sei para onde foram. O cacique viajou para Brasília, mas temo que será uma nova tapeação. Foi avisado que buscasse orientação do CIMI ali, em Brasília. Os invasores fazem pressão de todo o lado. No começo são “arrendatários” depois se tornam donos“ aguardando que a justiça resolva o problema criado…”  Clima que reinou em toda a região. Diante da omissão da FUNAI, relatei a situação aos lideres indígenas, na 3ª. Assembleia dos Povos Indigenas, em Merur/MT. Estes levaram a sério e criaram uma comissão de índios Xavantes e Bororo, que foi comigo ver a situação in loco. E ao final se reuniram com líderes Kaingang e Guarani, em Frederico Westfahlen, onde os animaram a se libertarem eles mesmos. A partir desta assembleia, começaram a soprar novos ventos em quase todas as áreas indígenas do Sul. Em 1977 os Guarani de Rio das Cobras, se revoltaram contra os invasores. Os Xavantes foram avisados e no dia seguinte publicaram na imprensa que 300 guerreiros estavam de prontidão para apoiar os Guarani. Não precisou, porque pegos de surpresa, os invasores deixaram às pressas a área. Em 1978, chegou a vez dos Kaingang de Nonoai pegarem de surpresa os invasores de sua área. Nesta luta se distinguiu o líder Kangang, Nelson Xangrê. Em menos de um mês todos os invasores foram expulsos da área. A maioria eram agricultores pobres que foram acampar em barracos, no Mun. de Ronda Alta, na Encruzilhada Natalino. Com o apoio e esclarecimento do vigário de Ronda Alta,  os agricultores entenderam que a culpa de sua situação não era dos  índios, mas do governo quanto à realização da Reforma Agrária prevista em lei. Ameaçados de serem deportados para o Mato Grosso do Sul e para a Amazônia, o padre os incentivou a resistirem e exigirem a Reforma Agrária no Estado, onde havia terras já desapropriadas para esse fim – as fazendas Anoni e Sarandi –  que  desde o governo Brizola estavam esperando para serem passadas aos agricultores sem-terra. Foi o início do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra-MST, da verdadeira Reforma Agrária.

 

.Fórum Justiça– O Relatório da Comissão Nacional da Verdade fala sobre a detenção de Dom Aloísio Lorscheider, na década de 70, a época bispo de Santo Ângelo (RS), por autoridades do I Exército no Rio de Janeiro, dentre outros fatos em relação a membros da Igreja Católica. Houve monitoramento e perseguição a missionários indigenistas por parte da Ditadura? Se sim, como se deu, o que pode nos falar sobre estes fatos?

Egydio – Pessoalmente senti de perto a perseguição e o controle da Ditadura Militar contra os missionários do CIMI e contra os índios.  Em 1973 foi criado o Secretariado do CIMI-Conselho indigenista Missionário e como o 1º. Secretário Executivo, organizei o programa do órgão que teve duas vertentes: Realizar Assembleias Indígenas e Encontros de Pastoral Indigenista para atualizar a política indigenista da Igreja, rumo ao Concílio. No final do 3º. Encontro de Pastoral Indigenista, em Palmas/Paraná, em outubro de 1974, fomos cercados pela Polícia Federal. E enquanto os bispos, à frente D. Tomás Balduino, discutiam com os policiais na portaria, nós queimamos, às pressas, o relatório do encontro. Represálias e tentativas de controle dos encontros do CIMI e das assembleias dos índios, semelhantes, tivemos também em Rio Branco/Acre e em Goiania. Em janeiro de 1977, a 1ª. grande assembleia dos povos indígenas de Roraima, em Surumu, foi cercada pela FUNAI com a Polícia Federal e colocou os líderes sob o dilema, ou expulsam D. Tomás e Egydio da Assembleia, ou fecharemos a Assembleia. Os indígenas não cederam e a Assembleia foi fechada. Como já anoitecia, não puderam expulsar os índios. E os lideres passaram a noite programando novos eventos que terminaram 32 anos depois na homologação da Reserva Indígena continua, Raposa Serra do Sol. Em julho de 1976 visitei, com o Pe. Rodolfo Lunkenbein diversas aldeias Bororo e Xavante, ameaçadas pelos fazendeiros da região, inclusive, a do líder Mario Juruna. Na mesma manhã em que me despedi do Pe. Rodolfo e dos índios Bororo, em Meruri, o Pe. Rodolfo e Simão Bororo, foram mortos pelos fazendeiros. Dois meses após, o Pe. João Bosco Burnier, Coordenador do CIMI Mato Grosso, foi morto por policiais, no Ribeirão Cascalheira. Desde meados de 1975 o Presidente do CIMI, Dom Tomás Balduino e toda a equipe do Secretariado, fomos proibidos de entrar em todas as áreas indígenas do país. Proibição que pesou sobre mim até o fim da Ditadura, em 1985. Mas, como não marca presença junto à maioria dos povos indígenas que para ele não existem e se existem não deveriam existir, eles serviram de refúgio e proteção para os membros da equipe do Secretariado do CIMI. E não tendo mais que pedir autorização da FUNAI para entrar em área indígena, foram os anos em que mais áreas indígenas visitei. Passei boa parte do meu tempo buscando localizar as populações indígenas mais abandonadas e destroçadas pelos seringais, garimpos e agronegociantes, abrindo caminho para os jovens da OPAN e do CIMI se encarnarem, em seguida, na situação dessas populações abandonadas e animá-las na luta pelos seus direitos à terra, à sua cultura e autodeterminação

No livro NOS PORÕES DO DOI CODI, que trouxe à luz os primeiros documentos secretos da Ditadura, nós membros do CIMI somos citados várias vezes, mostrando o controle exercido sobre nós. Outras revelações desse controle da Ditadura sobre vieram à luz na medida em que os documentos foram saindo.

Fórum Justiça– Há um procedimento no Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul sobre violações sofridas pelos indígenas na Ditadura, naquele estado? O que poderia destacar sobre o que ocorreu ali naquele período?

Egydio: Quando visitei com Thomaz Lisboa, em abril de 1967, como estudantes de Teologia, os toldos indígenas do Rio Grande do Sul, estes eram administrados, metade pelo Estado e metade pelo Serviço de Proteção aos Indios-SPI. Como resultado da nossa visita publicamos, em maio daquele ano, uma série de 7 artigos, no Correio do Povo de Porto Alegre, relatando a calamidade vivida pelos índios no Estado, tanto nos postos federais, como estaduais. Quando saiu o 3º. artigo, a Assembleia Legislativa instaurou uma CPI-Comissão Parlamentar de Inquérito, para apurar a veracidade de nossas denúncias. A CPI provocou acusações mútuas, entre o SPI e o Serviço Estadual dos Índios que concluíram na CPI-Nacional que extinguiu o SPI e o Serviço Estadual e criou a FUNAI, em dezembro de 1967. O relatório da CPI foi feito por Jader Figueiredo e trouxe à luz as atrocidades cometidas contra os índios à nível nacional pelo SPI. Infelizmente, as violações sofridas pelos indígenas no Estado do Rio Grande do Sul, não diferiam das do SPI. Os Governos do Rio Grande do Sul, de todas as correntes políticas, – do Brizola ao Meneguetti, – foram cruéis violadores dos direitos indígenas. A badalada Reforma Agraria de Brizola, foi feita sobre as áreas indígena, principalmente Inhacorá e Serrinha. E durante o governo Meneguetti, os Kinagang de Ventarra,foram empurrados sobre um caminhão que os despejou na área de Votouro, junto a outro clã Kaingang. Tive oportunidade de ver ainda um cachorrinho tristonho, se aquecendo nas brasas do último fogo deixado pelos índios!

Ambos os serviços foram extintos. E a gente esperava melhorias com a vinda da FUNAI. Mas estas nunca vieram. Só vieram quando os próprios índios incentivados pelos seus patrícios de outras regiões e com o apoio de entidades da sociedade civil entraram em sena. A política do órgão oficial hoje não deu um passo a frente do SPI. Defende os mesmos princípios integracionistas, necrófilos que comandaram a politica indigenista durante toda a Ditadura Militar.

Casa da Cultura do Urubuí, dia 02 de novembro de 2020.

Egydio Schwade

[1] As entrevistas foram elaboradas por Roberto Antonio Liebgott,  do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e Rodrigo de Medeiros Silva, da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), que compõem o FJ no Rio Grande do Sul.

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