REMOÇÕES NO RIO: A LUTA PELO DIREITO À MORADIA NA DEFENSORIA PÚBLICA
Por Eduardo Sá, 26.08.2013
Maria Lúcia Pontes, do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Foto: Eduardo Sá.
Maria Lúcia Pontes, do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Foto: Eduardo Sá.
Centenas de comunidades ameaçadas de remoção no Rio de Janeiro. Estava estampado nos jornais, mas o processo continua e ficou invisibilizado. Obras para a Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas em 2016, além dos problemas provocados por fortes chuvas nos últimos anos, são as justificativas do poder para o atual projeto de cidade. De um dia para o outro os moradores podem chegar e se deparar com o SMH (Secretaria Municipal de Habitação) pichado em sua casa. Indenização, aluguel social (valores abaixo do mercado), e realocação (distantes da origem) são as opções que lhes são impostas. Na maioria dos casos sem diálogo.
Nesse cenário que o Núcleo de Terras e Habitação (NUTH), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, vem atuando de forma combativa. Conversamos com Maria Lúcia Pontes, titular do órgão que acompanha há anos o trabalho, e ela conta as dificuldades políticas internas enfrentadas pelos defensores nos últimos anos. Fala também sobre a importância do diálogo com as comunidades, a atuação no front pelos defensores e os direitos dessas famílias que são sistematicamente violados pela prefeitura. Para ela, a luta é pelo direito à cidade.
Por que e quando o NUTH foi criado?
Foi criado em 1989 num contexto no Rio de muito conflito de terras, mais na zona oeste. Era uma época de muitos loteamentos irregulares e ocupações nessa área de grupos sem teto. Sua origem foi o núcleo de loteamentos da Procuradoria Geral do Estado coordenado por Miguel Baldez, tinha um defensor público e um promotor de justiça. Ele assessorava os moradores, inclusive com decretos de desapropriação da área em conflito. Com a mudança do governo, a Procuradoria foi se fechando para as comunidades mais pobres e a defensoria cria o NUTH, que passou a acompanhar esses conflitos. Não tínhamos ainda um acompanhamento tão forte das favelas. Alguns defensores se envolveram muito com esse trabalho, como o Walter Elísio, hoje no Instituto de Terras e Cartografias do Estado do Rio de Janeiro (Iterj). Com a sua saída a defensoria fechou um pouco sua porta e de cinco defensores passou a ter dois.
Com o Pan Americano em 2007 as comunidades atingidas se articulam e procuram a Pastoral de Favelas. Baldez, Leonardo Chaves, na época subprocurador de Direitos Humanos do MP e Padre Luiz Antonio da Pastoral, fomentam a criação do Conselho Popular que começou a atuar e fazer reuniões quase semanais. Pediram uma mudança de postura ao Núcleo, que teve o seu maior embate nesse período com o Canal do Anil, uma comunidade bastante forte nesse momento por conta da igreja e lideranças. A postura dos defensores da época era muito formal, de “gabinete” e eles queriam um defensor mais próximo às comunidades, foi aí, em abril de 2007, que o Defensor Geral da época me convidou para atuar no nuth, mesmo eu sendo identificada como de um grupo político divergente do Defensor Público Geral. As comunidades estavam pressionando e no nuth atuavam só duas defensoras que não entendiam a importância de ir as comunidades. A partir da parceria com o Conselho isso tudo vai mudar.
As próprias comunidades começaram a entender que existia esse mecanismo para ajudar e começaram a procurar? Demanda tinha, mas o órgão não tinha visibilidade?
O Iterj, que trabalha com regularização de comunidades, era procurado por moradores com conflitos fundiários e ele encaminhava o caso ao núcleo, que funcionava dentro do Instituto. Com o Conselho Popular, que se reunia pelo menos quinzenalmente, isso mudou vertiginosamente. Não tinha mais intermediário, eu passei a acompanhar suas reuniões e o contato era direto. O Núcleo passou a ser muito conhecido e em 2008 muda de postura com uma pequena equipe, três defensores, que trabalham de forma completamente diferente. A comunidade chegava e marcávamos uma visita para conversar com os moradores. Quando a remoção era anunciada para o dia seguinte, entrávamos com uma ação e um defensor ia ao local para intervir no conflito.
Casa com pichada com o SMH (Secretaria Municipal de Habitação) e protesto de moradores. Foto: Internet.
No caso do Canal do Anil eu ainda trabalhava sozinha no nuth e entre preparar uma ação judicial enquanto demoliam as casas na comunidade ou intervir no local, optei pela ida a comunidade. O Conselho Popular se mobilizou e várias lideranças comunitárias foram para o Canal do Anil, uma menina tinha acabado de ter neném e queriam demolir a casa na cabeça da família, aí entraram na casa para impedir a demolição. Barramos as demolições no grito, no final do dia preparei uma ação cautelar e no dia seguinte dei entrada e ganhamos a liminar que suspendeu as demolições. Isso não era comum, até porque a ação da Prefeitura é muito rápida. Se entrarmos com a medida judicial no dia seguinte as casas estarão todas demolidas, então o que impediu a demolição foi a resistência no dia e no local. Esse caso virou nosso exemplo de uma atuação efetiva. E na hora do defensor despachar com o juiz, é diferente porque ele fala o que vê e conhece sobre a comunidade. “Eu estava lá e tinha uma mulher que tinha acabado de ganhar o neném dentro da casa e a prefeitura queria demolir, isso é impossível, é uma violência e ameaça à dignidade dessa pessoa”, por exemplo.
Não é aquela coisa fria processual no papel.
Exatamente. O Núcleo foi ganhando projeção com um contato mais direto com as comunidades. O Alexandre Mendes foi o primeiro a trabalhar comigo e tinha uma atuação muito forte, a gente foi criando uma equipe muito boa e de ação. Pelo direito à moradia, à regularização, à Cidade, não só nos processos. Uma ação política de discussão de direitos. As pessoas achavam que a prefeitura podia bater o pé na porta, tirar a família e derrubar a casa sem nenhuma justificativa e discussão. O mais grave naquela época e ainda hoje é essa aceitação e conformismo das famílias. A falta de resistência e consciência dos seus direitos. Já temos uma legislação protetiva, mas o Judiciário ainda tem uma tendência extremamente autoritária. Uma lei me favorece e outra não, então o juiz tem certa liberdade para escolher qual lei quer aplicar. Então quando as famílias não acreditam no seu direito, a gente parte do zero e dificulta mudar a cabeça dos juízes e as suas decisões. Por isso a importância da atuação do Conselho Popular e das reuniões nas comunidades com lideranças com experiências de resistência contra remoção.
Mostrar também que tem mais gente lutando contra essa injustiça.
Mostrar a possibilidade de uma vitória. Claro que não é total, mas tem e o primeiro passo é confrontar o direito mais retrógrado. A gente fazia muito isso, e mudou muito nossa atuação. Mas no final de 2010 é eleito o novo Defensor Público Geral e em 2011 ele sinaliza uma mudança de postura convidando o Prefeito do Rio para uma reunião com os defensores, sem discutir com os defensores do nuth que acompanhavam conflitos intensos com a Prefeitura. Não acho errado conversar com o prefeito, tanto que estamos conversando com ele agora mesmo sobre Vila Autódromo e outras comunidades. O problema naquele momento foi não conversar com as lideranças e tirar com elas uma pauta de reivindicações para levar ao Prefeito. Soou muito mal, e as lideranças comunitárias promoveram uma manifestação em frente à Defensoria e o Defensor Geral colocou seguranças na porta para impedir as pessoas de entrar na nossa sede. Foi uma postura equivocada que acirrou a desconfiança das lideranças.
Equipe do NUTH recebendo a Medalha Tiradentes na Alerj. Foto: Direito para quem?
A Roberta Fraenkel que era da equipe do NUTH foi nomeada coordenadora pelo Defensor Geral em janeiro e depois deste incidente foi exonerada, ela estava de férias e durante a entrega da Medalha Tiradentes na Alerj, anunciada há um ano, por conta da atuação do Núcleo junto às comunidades, todos foram surpreendidos com a indicação de outro coordenador. Foi uma situação bem complicada, porque o Defensor Geral não chamou ninguém para explicar. Os colegas ficaram muito chocados. Neste contexto, Adriana Brito fez um discurso emocionado sobre a situação, e depois os colegas avaliaram que não tinham espaço para atuar no NUTH. Não sabiam como seria a atuação do Núcleo com a nova coordenação. Eu achei uma pena porque todos eram defensores muito bons, com uma atuação exemplar, mas entendi o medo dos colegas. Foi uma perda muito grande para as comunidades.
Houve também um problema em relação aos estagiários, a base também mudou né?
Tínhamos uma equipe de estagiários muito comprometidos. Fazíamos a nossa própria seleção com um perfil mais consciente e crítico do direito. Muitos atuam até hoje na defesa das moradias ou outros direitos. Esses estagiários eram muito ligados aos defensores, então a primeira decisão do novo coordenador foi tirá-los. Gerou um problema inclusive para ele, porque a memória do trabalho estava com os estagiários e o NUTH estava sendo reinstalado em nova sede. Foi uma decisão política e administrativa. Foi até um pouco traumático, porque os estagiários foram lá pegar suas coisas e chamaram a segurança do prédio. Um horror, saíram ameaçados, uma situação bem constrangedora.
Esses rearranjos têm a ver com os grandes eventos e um incômodo com a atuação de vocês?
Não tem uma relação direta, porque o Defensor Geral foi eleito. Mas ele achou que deveria se aproximar mais do executivo, não sei qual vantagem viu nessa decisão política. Acho que tem uma questão pessoal, porque ele nem tinha, talvez tenha hoje, consciência do equívoco do seu ato e como repercutiria. Errou na análise porque não ouviu quem conhecia o que estava acontecendo na Cidade em relação à ameaça de remoção por conta da Copa e Olimpíadas. A sua relação com os colegas e as comunidades poderia ter começado de outra forma, mas achou que tinha a solução dos problemas e que sabia o que seria bom para todos sem ouvir os diretamente interessados. Então foi uma decisão pessoal, a sua manutenção é que pode ter uma questão mais política. Certamente foi por causa disso que eu voltei para o NUTH, quando em 2012 abriu a sua titularidade.
Quantas comunidades atenderam nesses últimos anos e como ocorre o suporte jurídico?
Não tenho o número total. Por conta das chuvas a gente fez um trabalho com o núcleo de direitos humanos em 2010 e atualmente atendo três comunidades de Niterói, mas a nossa atribuição legal é no município do Rio. Assessoramos defensores de outros lugares, mas dependendo de situações como as chuvas fazemos outras ações. Atualmente cada defensor do NUTH atende cerca de 70 comunidades, somos 5 defensores, então atendemos no total cerca de 350 comunidades. Não temos uma estimativa do total de famílias, porque algumas comunidades são pequenas com 30 famílias e outras maiores como a Providência e Manguinhos. Na verdade, você acaba atendendo um grupo mais focado. Em Manguinhos eu atendo a Vila Turismo, onde tem o PAC. Pensamos em parcerias para pesquisadores estudarem os arquivos do núcleo para ter esses números, mas isso foi perdido depois de 2011.
Presidente da Associação de Moradores da Vila Autórdromo estendendo faixa em uma atividade na comunidade. Foto: Imagens do Povo.
A estratégia de ação mais eficaz é o contato direto com a comunidade. Às vezes ela só quer sair daquele risco imediato, e com a situação mais acomodada para de discutir, como aconteceu com o Canal do Anil. Depois que conseguimos a liminar que impediu a remoção, eles foram se distanciando e pararam de nos procurar, mas outros eventos podem acontecer e a ameaça continua, como acontece com a Vila Autódromo que luta contra a remoção há mais de 20 anos. De qualquer forma estimular o questionamento é fundamental, porque a prefeitura chega na comunidade dizendo que eles não têm direito a nada e têm que receber a indenização oferecida porque o trator vai passar de qualquer jeito. Esse discurso fica ali dentro da comunidade quando as pessoas não sabem o que fazer e aí a melhor estratégia é dar visibilidade ao que está acontecendo na comunidade, como fez a Indiana na Tijuca. Eles formaram uma comissão de moradores e se ligaram aos movimentos sociais e estão conseguindo resistir contra a remoção. De 2011 para cá esse trabalho de maior divulgação e visita nas comunidades diminuiu muito. Não sei se foi uma intenção da administração atual, mas tenho certeza que o Prefeito ficou muito agradecido, embora isso já esteja mudando.
O que tem que ser discutido é o direito à cidade, as comunidades têm direito à regularização fundiária e urbanística. Não faço apologia à favela, faço a defesa do direito à moradia e à cidade: regularização fundiária, urbana, saneamento básico, serviços públicos com preços que as pessoas possam pagar, etc. Ao contrário do Prefeito, acho que o morador de favela deve ter um tratamento diferenciado e de acordo com a sua realidade. Para comunidades com um perfil mais pobre permanecerem em áreas nobres, como por exemplo Santa Marta, Babilônia, Chapéu Mangueira, a conta de luz e o IPTU deve ser mais barato. Não tem sentido pagarem a mesma coisa que o morador da Vieira Souto: defendo a isonomia material. O respeito e a dignidade é que deve ser igual: a comunidade deve ser reconhecida, titulada e ter condições de se manter naquele lugar e não é isso que está acontecendo, recebemos informação de que nessas comunidades as pessoas estão vendendo suas casas porque não estão conseguindo pagar as contas. Chamamos isso de remoção branca.
Muitas comunidades estão sendo jogadas para muito longe de suas raízes também.
As pessoas que são tiradas de suas comunidades e são jogadas para lugares distantes ou vendem suas casas por não estarem conseguindo pagar as contas depois da urbanização e vão para outras comunidades sem regularização reproduzem uma Cidade Desigual e desumana. Você podia dizer que eles moravam mal, mas tinham seu lastro histórico e de vida. Era o vizinho que ajudava a tomar conta do seu filho, que socorria numa emergência, etc. Tinham uma história de vida e uma solidariedade comunitária que perdem quando são jogados para um lugar onde não têm contato com ninguém. Aí a vida fica muito mais difícil e por isso abandonam os locais para onde foram e se puderem retornam para as áreas não urbanizadas das comunidades.
Primeiro é trabalhar o direito de não remoção e o direito à cidade, lutar pela permanência, depois pela regularização fundiária e para que não sejam excluídos pelo mercado capitalista. Apesar da atuação da prefeitura muito desumana e que não respeita a legislação mínima, inclusive de proteção à moradia e regularização, eu acredito que estamos avançando e a pressão das ruas é fundamental. A movimentação dessas comunidades exige da prefeitura outra postura e o Judiciário pode ajudar, a Indiana e a Providência tem uma liminar que proíbe a demolição das casas e a Vila Autódromo tem uma ação que determina a retirada só das famílias que ocupam a faixa marginal da lagoa, então a comunidade ganha fôlego com as medidas judiciais, mas o que torna a vitória mais efetiva é a mobilização da comunidade.
Existe uma expectativa no Poder Judiciário, como se ele fosse o salvador, mas não é, ele deve dar suporte a luta política da Comunidade, mas não a substituir. Vila Autódromo é um exemplo, não se acomodou e resiste contra a remoção com mobilização permanente.
(*) Leia dezenas de reportagens publicadas pelo Fazendo Media sobre as remoções no Rio de Janeiro
http://www.fazendomedia.com/remocoes-no-rio-a-luta-pelo-direito-a-moradia-na-defensoria-publica/