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O papel das agências de Estado nos casos de assédio sexual e moral

O papel das agências de Estado nos casos de assédio sexual e moral

06/09/2024

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Por Élida Lauris, consultora independente de direitos humanos

As denúncias de assédio são geralmente recebidas com choque, quando se trata de uma pessoa pública muito admirada, ainda que, sem nenhuma surpresa para várias pessoas. Com todas as dificuldades e obstáculos que as mulheres enfrentam para denunciar, além dos dilemas pessoais sobre as turbulências que uma denúncia de assédio contra uma figura importante pode causar na sua vida, um fato é certo: as mulheres falam umas com as outras e com pessoas da sua confiança. Carregar uma experiência de assédio sozinha, muitas vezes duvidando de si mesma e se questionando sobre o que poderia ter feito para evitar, é doloroso, difícil e solitário. Poder dividir com alguém ou alertar alguém sobre esse comportamento traz uma sensação de poder finalmente dividir esse fardo e contribuir para evitar que outras pessoas passem pelo mesmo.

Assim, de um lado, os agressores se apressam em comunicar que não há provas, que as denúncias são aprócrifas e caluniosas. Iniciam-se campanhas e movimentos para colocar em questão a idoneidade de quem denuncia ou acolhe as denúncias. Exige-se que para denunciar ou acolher uma situação de assédio sofrido as pessoas têm que ser perfeitas.

De outro lado, as notícias começam a surgir em série e, ao lado da surpresa de quem está sabendo daquilo pela primeira vez, há o reconhecimento de que há muito tempo já existia uma rede de alerta, há pessoas que já tinham ouvido situações passadas por amigas e colegas; há conhecimento de casos em que pessoas tentaram falar e não tiveram escuta, conhecem-se pessoas que falaram e foram re-assediadas.

Estou me referindo a todo e qualquer caso de assédio. No caso em questão, que envolve uma figura com papel relevante na chefia do Estado brasileiro e no campo dos direitos humanos, a primeira reflexão que vêm à tona é que essa é uma oportunidade que se abre para demonstrar à sociedade brasileira que assédio sexual tem que ser tratado com profundidade e através de ações efetivas.

Alguns pontos em especial devem ser considerados:

  1. É preciso encarar verdadeiramente a situação do assédio nas universidades brasileiras

Enquanto este texto está sendo lido, várias situações de assédio sexual, abuso de poder, ruptura de limites entre o público e privado, estão sendo tratadas como naturais dentro do ambiente universitário. Aqui, várias coisas se misturam, a admiração pelo professor, a juventude das estudantes, o encanto da proximidade com aquela figura admirada e querida por tantas pessoas. Da minha experiência acompanhando esses casos, é possível dizer que os próprios professores não se vêem como assediadores, se vêem como homens valorosos numa relação adulta, homens únicos que podem oferecer oportunidades inigualáveis às estudantes.

Mas o mais importante não são esses fatores, o que realmente leva a um ambiente de naturalização do assédio, é falta de normas de condutas, protocolos de ação, ambientes de acolhimento e escuta profissional dentro das universidades. O que deve conter a política anti-assédio das universidades para combater a naturalização dessa prática? Como as universidades estão estruturadas para receber e processar denúncias de assédio? Quantos casos são apurados e quais os resultados alcançados anualmente pelas universidades no combate ao assédio? Como as pessoas que denunciam são acolhidas? Sua identidade e dignidade preservadas?

Todas as universidades devem responder a essas perguntas, não com regras genéricas, dizendo que, sim, têm políticas, mas com um plano de ação concretos, com indicadores e monitoramento das suas ações, com formação adequada do corpo funcional e rigor na aplicação de códigos de conduta. Com prestação de contas pública sobre o combate ao assédio.

Já passou da hora das universidades brasileiras prestarem contas sobre como lidam com essas situações e como pretendem aprimorar seus procedimentos internos, numa perspectiva de melhoria contínua.

  1. Se o governo federal tem política anti-assédio, a questão é institucional e não pessoal

No mundo ideal, em que ainda não vivemos, as notícias de assédio não deveriam virar um escândalo e tomar proporções de uma crise política para serem tratadas. Isso em si já é um indicador de que o tema não recebe a seriedade que merece quando vem à tona a primeira vez. Não deveríamos saber pelos jornais quem são as vítimas, que passam a ter vida virada de cabeça para baixo, sem poder voltar atrás. Não precisaríamos gerar um escândalo para responsabilizar agressores. Todas as pessoas merecem ter sua dignidade protegida e não ter suas vidas devassadas como se fossem personagens de uma novela. Uma política anti-assédio que funcione, apura os fatos com responsabilidade e sigilo e toma providências imediatas para evitar que o problema tome proporções catastróficas. O escândalo midiático é em si a prova do fracasso ou da falta de uma política efetiva anti-assédio.

Dito isso, os fatos que estão na mídia não são sobre Sílvio Almeida ou sobre Anielle Franco. É sobre como o governo federal aplica as regras e diretrizes anti-assédio com que se comprometeu. As notícias até agora indicam que há pessoas denunciantes que sentiram que não estão seguras para levar suas queixas aos órgãos competentes. Quais mecanismo devem ser instituídos para uma política anti-assédio efetiva?

As agências do Estado têm que mostrar o que aprenderam com esse episódio e reagir com a instituição de medidas e mecanismos necessários e urgentes que considerem as seguintes perguntas:

  1. Qual o órgão que ficará responsável para apurar o caso? Se vários órgãos estão responsáveis, nenhum está responsável. O que os vários órgãos indicados até agora vão fazer? Quais suas responsabilidades e competências?
  2. Que mecanismo será instituído para oferecer às pessoas que queiram denunciar segurança e proteção, caso desejem levar adiante suas denúncias?
  3. Que mecanismos de acolhimento e escuta vão ser colocados em prática para as denunciantes?
  4. Qual a competência das pessoas que vão apurar os fatos? São pessoas preparadas para lidar com casos de assédio? Há profissionais com formação necessária para acolher as denunciantes? São profissionais que estão preparados para adotar procedimentos com uma perspectiva de gênero e de raça?
  5. Que salvaguardas as denunciantes têm de que não vão ser re-vitimizadas, culpabilizadas ou expostas, caso decidam avançar com a denúncia?

É preciso separar as pessoas do cargo. As mídias sociais dos ministérios não podem ser utilizadas para veicular versões de defesa de nenhuma das partes. Esse é mais um exemplo de má prática e confusão entre o público e o privado. O Ministério é um órgão de Estado e deve agir como tal, colaborando e fornecendo as informações necessárias para as investigações. Ministério não tem lado diante de denúncias, tem dever funcional de colaborar plenamente com a apuração dos fatos.

Pelo desenvolvimento do caso até aqui, o uso das redes sociais do Ministério para veicular respostas e versões demonstra que, a continuar no cargo, o Ministro pode utilizar os recursos que têm à disposição para intimidar quem deseja denunciar. Essa razão é suficiente para que a equipe ministerial acusada seja afastada do cargo para o transcurso das investigações.

  1. O agressor tem tanto direito à defesa, quanto a vítima tem direito a não ser atacada e ver sua palavra descredibilizada

A falta de uma política anti-assédio eficiente entristece a todas e todos nós. Não acredito que nenhuma pessoa minimante comprometida com a dignidade humana queria acompanhar uma situação tão dolorosa virar um escândalo nacional. Infelizmente, o escândalo tem substituído a justiça nos processos de assédio. E o direito à defesa tem sido substituído por qualquer fato que pode descredibilizar as vítimas e reforçar estereótipos contra elas. A seguir à deflagração do escândalo, segue a devassa na vida das vítimas e a expectativa de que, se elas não forem perfeitas, o assédio pode até ter acontecido, mas não perde seu valor. Tudo vira prova contra o caráter das vítimas: se elas não denunciaram, se não se manifestaram com a veemência necessária, se ficaram caladas ou se continuaram mantendo uma relação cordial com o agressor. Na maior parte das vezes as vítimas são atacadas por fatos que em nada corroboram ou desmentem o episódio de assédio em si. Nesse caso, é particularmente grave o ministério ter soltado uma nota com acusações contra o grupo que acolheu as denúncias das vítimas. Acusações sobre um procedimento de licitação que tem fórum e conta com processos próprios para serem apuradas e para sancionar quem foi considerado responsável por más práticas. Esse fórum e procedimentos certamente não são soltar acusações que ainda não foram devidamente apuradas na rede social do Ministério.

Casos de assédio sexual geralmente acontecem em situações privadas em que a prova depende da palavra da vítima e do agressor. Devido à misoginia e às relações patriarcais, a palavra da vítima nunca recebe a credibilidade devida e essa é uma das razões pelas quais as mulheres preferem manter o silêncio, ao qual têm todo direito.

Volto a dizer, esse assunto não é sobre Anielle Franco e Silvio Almeida, uma política anti-assédio deve incluir protocolos de investigação que tenham como base levar a sério a palavra da vítima, com métodos de apuração dos fatos que não envolvem descredibilizar seu caráter. A pessoa acusada também tem direito à defesa. O direito à defesa diz respeito a apresentar sua versão sobre os fatos e não reunir elementos para criar estereótipos negativos sobre o comportamento das pessoas denunciantes.

Nenhuma pessoa minimamente comprometida com os direitos humanos quer ver processos de execração pública, sem que as pessoas possam apresentar sua versão dos fatos e se defender. É preciso também ter em conta que uma das provas mais contundentes da prática de assédio sexual é a existência de um padrão de conduta e de ações predatórias sistemáticas por parte do agressor. É exatamente por essa razão que esse caso não pode focar numa vítima, sobretudo, se há informações de que existem mais denunciantes. É preciso que os procedimentos de apuração criem condições para que todas as denúncias cheguem aos órgãos competentes e, assim, seja possível apurar a existência de um padrão de conduta.

  1. O assédio moral deve receber a mesma atenção que o assédio sexual

De maneira geral, a atenção midiática que recebe o assédio sexual faz com que as situações de assédio moral denunciadas em um caso sejam varridas para debaixo do tapete. O assédio moral é debilitante e degrada as condições de trabalho das pessoas, é uma violação de direitos humanos séria que precisa ser apurada. Esse caso é uma oportunidade de ação da Administração Pública federal para criar parâmetros de apuração e avaliação das situações de assédio moral.

Espera-se que o governo federal apure devidamente os processos de assédio moral que estão abertos no Ministério. É igualmente obrigação do governo criar condições seguras para que outras pessoas que desejem denunciar situações degradantes e maus tratos possam denunciá-las. Apurar o assédio moral nesse caso é de extrema importância. Primeiro, porque estamos falando do Ministério de Direitos Humanos. Segundo, porque se o governo demonstrar capacidade de apurar e sancionar condutas de assédio moral nesse caso, estará agindo para prevenir e interromper situações semelhantes em toda a administração federal.

  1. O racismo será implacável na apuração do caso

A sociedade brasileira toda já perdeu. Em menos de 24 horas, estamos assistindo duas figuras negras icônicas no país serem tratados como crianças indesejadas que trazem a desarmonia para a família, obrigando o pai a fazer uma escolha de Sofia. O racismo que pesa profundamente sobre um homem negro, apenas por ser homem negro, é implacável quando esse homem negro é acusado de alguma má prática. A descredibilização que sofre toda mulher, é devastadora e praticamente irrecuperável quando essa mulher é negra. Mesmo quando o caso envolve duas pessoas célebres da luta antirracista do país, o racismo opera e domina as dinâmicas. O desdobramento desse caso vai expor diariamente como o racismo atua contra homens e mulheres negras e lhes retira alternativas e soluções que favoreceriam pessoas brancas em situações semelhantes. Ao mesmo tempo em que nenhuma pessoa razoável pactua com linchamentos públicos e condenações prévias sem provas, uma mulher negra não pode ser condenada apenas por ser mulher negra em mais uma situação de violência que essa condição lhe impõe. O compromisso com a luta antirracista não pode excluir a luta contra misoginia, um antirracismo misógino, que assedia e viola o corpo das mulheres, que não reconhece os seus direitos como vítimas de violência de gênero, não atende aos interesses de uma sociedade justa. O processo de apuração dos fatos deveria ser íntegro e preservar a dignidade das pessoas envolvidas, garantindo a responsabilização e a seriedade com que o assédio deve ser tratado.

Por fim, é possível admirar uma pessoa intelectualmente, reconhecer o valor da sua trajetória e ter rigor para apurar os fatos, sem cair na tentação de reproduzir práticas vexatórias e de degradação do caráter de quem conseguiu reunir forças para denunciar ou está implicada em uma denúncia. A luta por direitos humanos é para superar o racismo patriarcal e por políticas públicas, cobrando a responsabilidade do Estado em situações em que há violações desses direitos. É isso que se espera do Estado brasileiro agora e sempre.

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