Fórum Justiça

Entrevista com Juracilda Veiga, Indigenista que atua junto às Comunidades do Sul do Brasil

08/03/2021
Democratização do Sistema de JustiçaTerritórios

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A quarta entrevista da série realizada pelo Fórum Justiça-RS sobre a questão indígena e a Ditadura Civil-Militar traz o relato da indigenista Juracilda Veiga, quem atua junto a comunidades indígenas no Sul do país.

Fórum JustiçaTens escrito sobre os Kaingang. O Estado e sociedades brasileiros há muito vem atingindo este povo. Mas o período da Ditadura Civil-Militar, por seu caráter autoritário e de medidas de exceção, pode ter intensificado violações à organização social e à cosmovisão dos Kaingang?

Juracilda Veiga (JV)- A situação dos povos indígenas no sul do Brasil foi de invasão e retirada de direitos ao longo da história do Brasil. Houve no Rio Grande do Sul um pequeno período de 1916 a talvez 1921, quando as Diretorias de Terra estavam sob a égide da filosofia positivista que buscava assegurar direitos aos povos indígenas com a demarcação de suas terras, o que não chegou a se concretizar na totalidade, no entanto, as terras reservadas para os indígenas foram constituídas naquele período, sob a batuta de Carlos Torres Gonçalves.

Depois disso, as Diretorias de Terra, sempre nas mãos dos políticos locais, exerciam um poder ilimitado nas terras indígenas. Desde sempre os indígenas deveriam “progredir”, e isso significava trabalhar no sistema capitalista e estar a serviço das oligarquias locais.

O SPI foi substituído pela FUNAI em 1967 depois que o Relatório Figueiredo denunciou o desrespeito e atrocidades cometidos contra os indígenas no país, por agentes públicos. No RS, apenas o Posto Ligeiro estava dirigido pelo SPI, os demais postos eram comandados pelas Diretorias Estaduais de Terra. Essas reduziram áreas já demarcadas ou delimitadas como as de Inhacorá.

Essa mudança encheu os indígenas de esperança, no entanto, a forma de atuação da FUNAI continuou a prática vigente no SPI.

Em todos os estados do sul os indígenas eram utilizados na abertura de estrada, muitas vezes com a promessa de que teriam suas terras demarcadas e escrituradas para a comunidade como pagamento do trabalho realizado, ouvi isso em Mangueirinha (PR) Xapecó (SC) e em Nonoai (RS). E essa promessa nunca foi cumprida na totalidade. E aquelas demarcadas e re-demarcadas a menor, ainda foram destinadas à produção de interesse do mercado, como trigo, soja, madeira, etc.

Da década de 1940 até 1967, todos trabalhavam nas lavouras do Posto, chamadas de comunitárias, em trabalho forçado, homens e mulheres e toda produção era vendida para manter o serviço do Posto e com certeza também desviar algum para as chefias.

A população recebia comida feita numa cantina, de má qualidade, polenta e chá, pouca carne, uma vez por semana apenas. Com horário para iniciar e terminar o trabalho. Esse era o tempo do panelão conhecido por todas as comunidades de SC e RS.

As mulheres abortavam no trabalho, (espontaneamente) e não podiam ir enterrar o filho, antes do fim do dia.

Com a Ditadura Militar as aldeias foram tomadas por coronéis, que criaram um corpo de “milicianos” indígenas para protegê-lo e para fazer aplicar as “leis”. As lideranças tradicionais foram desprezadas e lideranças da confiança do “coronel”, Chefe do Posto, foram impostas às comunidades através de indicação do chefe de Posto ou de eleições com voto aberto e, portanto, dirigidas.

Os indígenas que contestavam eram perseguidos, presos e torturados na cadeia do Posto e muitas vezes transferidos, perdendo sua pátria, seus bens e ficando em exilio, castigo que atingia toda a família. Um indígena só é cidadão na terra em que nasceu.  Mesmo que chegue à posição de liderança, sempre será apontado pelos demais como “estrangeiro”.

Estavam proibidos de receber visitas de agências indigenistas como o Cimi. Alguns indígenas que viajavam a convite do Cimi para reuniões de interesse indígena, ao voltar para a Terra Indígena, eram interrogados e presos.

Na década de 1970 a FUNAI criou o Projeto Pinho, que acabou com os pinheirais nativos, e o projeto Trigo, que retirou das famílias seus sítios e terras planas para fazer “roças mecanizadas do Posto”, interferindo na forma de ocupação e aproveitamento das terras pelas comunidades.

Fórum Justiça- Atuaste em comunidades indígenas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina no período da Ditadura Civil-Militar, como avalias o impacto daquele período no modo de ser, viver, nas culturas e organização social das comunidades; como sentiu, naquele período, a influência da ditadura militar nas comunidades?

JV- Como o Marechal Rondon era Militar, os indígenas sempre consideraram o exército seu aliado. Nunca relacionaram seus problemas à instituição, mas aos desmandos do mandante local.

No entanto, foi um período de recrudescimento do autoritarismo nas terras indígenas.

No Paraná e Santa Catarina as indígenas foram obrigadas a passar por exames ginecológicos para que os médicos pudessem estudar o benefício do parto de cócoras, que é uma tecnologia indígena. Esse estudo deu tão bom resultado que hoje no Hospital da Unicamp-Centro de Atendimento Integrado a Saúde da Mulher-CAISM se faz parto de cócoras, enquanto as mulheres e parteiras Kaingang foram ameaçadas de continuar essa prática sob risco de prisão, caso mulher ou criança morresse num desses partos tradicionais. A medicina fitoterápica e de massagem dos Kaingang é muito desenvolvida, mais foi colocada sob suspeição e descrédito pelos agentes de saúde e médicos que atendiam a população. Vi durante esse tempo auxiliar de enfermagem destruir as garrafadas de remédios fitoterápicos dos indígenas sob a alegação de que não serviam para nada.

Ainda hoje, o atendimento nos hospitais é traumático para as mulheres indígenas, pelo desrespeito, preconceitos e má qualidade do atendimento. Nenhum trabalho foi feito no sentido de uma medicina que mediasse as questões culturais.

Os Kaingang faziam um ritual para os mortos onde produziam uma cerveja de hidromel chamada de Kiki. Ela foi proibida junto com as bebidas destiladas introduzidas pelos não indígenas. Esse ritual permite o acesso dos mortos recentes ao paraíso. Isto é, a aldeia dos parentes mortos, Weinkupring Iamá, ou Numbê. Essa prática foi desqualificada pelo Summer Instituto, que transformou a palavra numbê de mundo dos mortos, foi traduzida por inferno. E aumentou grandemente a entrada das igrejas evangélicas pentecostais nas terras indígenas, que desrespeitam essas práticas.

Atualmente não há como recuperar a prática desse culto aos mortos porque os rezadores morreram sem transmitir os saberes e poderes para outros aprendizes. Isso é uma perda irreparável.

Fórum Justiça– Na sua visão, como poderia ser construída uma reparação devida?

JV- Uma reparação aos povos indígenas começa pelo reconhecimento de que são sociedades anteriores à existência dos Estados Nacionais, e as terras necessárias à sua sobrevivência física e cultural devem ser asseguradas pelo Estado Nacional. As terras de ocupação imemorial, mesmo que ocupadas há um século por não indígenas, devem ser indenizadas e devolvidas aos índios, com igual indenização a eles pelas condições ecológicas perdidas e pelos lucros cessantes ao ter a terra usurpada para a colonização. Outras devem ser adquiridas como forma de reparação. É preciso assegurar o direito à terra a todo cidadão indígena, impedindo que autoridades autoritárias juntem para si a maior parte da terra indígena, com o objetivo de arrendar para o capitalista local. As pessoas devem receber apoio para produzir na própria terra, através de financiamento a fundo perdido da produção.

Reescrever e publicar a história local a partir do ponto de vista indígena

Punir severamente o preconceito e a discriminação.

Criar delegacias especiais da questão indígena para a exemplo da delegacia da mulher, tratar de crimes comuns que ocorrem nas terras indígenas contra mulheres e crianças.

Rediscutir o direito das comunidades de exercer a justiça na própria terra, impedindo que as cadeias comuns fiquem cheias de indígenas que ao regressar só trazem mais problemas às comunidades.

Investigar e punir a corrupção que ocorre nas terras indígenas em prejuízo à maioria da população.

Empregar os indígenas de forma remunerada em projetos de preservação e reflorestamento das terras indígenas.

Pagar as comunidades pelo sequestro de carbono e recarga dos aquíferos. Muitos afloramentos estão em áreas indígenas, mas nem mesmo isso tem sido olhado com atenção pelas autoridades.

Fórum Justiça- O atual governo federal enaltece o período da Ditadura Civil-Militar. O que percebe de ameaça a estes povos pelo retorno de valores declaradamente autoritários e que propugna por uma determinada padronização de cidadania?

JV- Todo o esforço feito nesse “processo civilizatório” de investir para substituir a língua indígena pelo português, favorecer os casamentos inter-étnicos, desprezar os conhecimentos da medicina indígena, aviltá-los moralmente obrigando a viver como empregado e não da sua terra – tem como objetivo declarar os indígenas não indígenas, tomar suas terras e jogá-lo na vala comum dos desvalidos da sociedade nacional.

Portanto, os indígenas e seus descendentes têm direito a sua terra ancestral. Os indígenas pertencem a sua terra e não o contrário.

Os indígenas têm direito a conservar e utilizar suas línguas.

Os indígenas têm direito a proteção da lei e ao uso de suas práticas e costumes.

Aos indígenas deve ser assegurada uma educação adequada e planejada de forma e religar suas vidas as práticas de uso da terra, sem prejuízo de qualquer outra formação que escolher.

O usufruto da terra indígena deve ser assegurado a todo cidadão indígena que nasça nessa terra indígena e ou nela viva.

O Estado deve atuar no sentido de fazer valer esses direitos frente à sociedade majoritária, afinal hoje ocupamos 87% do território indígena com o Estado Nacional, que tem a propriedade também dos 13% das terras indígenas.

O Estado sempre será devedor das comunidades indígenas e deve assegurar através de todos os meios as condições para que eles possam viver como sociedades diferenciadas na sociedade brasileira.

 

 

 

 

 

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