Jussara Rezende, Missionária e Integrante do CIMI, Relata como foi a Questão Indígena Durante a Ditadura Civil-Militar
Jussara Rezende é missionária e integrante do CIMI. Atuou junto aos povos Guarani, Kaingang e Xokleng.
Fórum Justiça– Entraste no CIMI na década de 70? Como era este contexto?
Década de 70, século XX, Brasil: tempo de ditadura instalada com o golpe militar de 1964. Tempo do que chamaram Milagre Brasileiro.
O Plano de Integração Nacional (PIN), implementado por Castelo Branco, pretendia a colonização do interior da Amazônia do Brasil e com isso, reforçar a vigilância nas fronteiras contra o perigo comunista. Para isso havia que desenvolver projetos de infraestrutura, abrindo estradas para transporte de matérias primas, construindo hidroelétricas etc… O contato com os trabalhadores levou o contágio por doenças a comunidades inteiras de indígenas, o que pode se configurar como massacre. O jornal O Estado de São Paulo estampava vez que outra, fotos de indígenas famintas/os, magérrimas/os à beira das rodovias que estavam sendo abertas no norte do país.
Os povos indígenas eram vistos como atraso e empecilho para o desenvolvimento econômico e integração das regiões no Brasil. Haveria que ser amontoados em determinadas áreas e suas terras desocupadas para a construção de obras, criação de cidades ou então, deveriam integrarem-se (entregarem-se) à sociedade nacional.
Para popularizar o PIN e conquistar a simpatia e adesão da sociedade brasileira, o setor de propaganda do governo ditatorial criou slogans como, “Pra frente Brasil”. Em resposta aos que faziam a crítica à ditadura, o slogans era “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
No sul do país, no Paraná, a partir de 1975, inicia-se o projeto para a construção da hidroelétrica de Itaipu Binacional Brasil – Paraguai, expulsando os Avá-Guarani de seus territórios dos lados brasileiro e paraguaio.
O programa de governo ditatorial e sua consequente atitude repressiva contra todas/os que buscavam defesa de seus direitos, estendeu-se a todo o país. No sul do Brasil, lideranças indígenas que lutassem por seus territórios ou por outros direitos, eram monitorados, perseguidos, ameaçados, presos e muitas vezes torturados nas cadeias instituídas nas reservas indígenas – cadeias do Posto da FUNAI.
Na década de 70 nasceram e efervesciam as chamadas Assembleias Indígenas, de norte ao sul do Brasil, incentivadas e apoiadas pelo Cimi. Indígenas que participavam dessas Assembleias partilhavam a situação de seu povo e traziam informações de outros. Acontecia, através dessas articulações, o que hoje chamamos de empoderamento do movimento indígena. Para coibir a articulação e o fortalecimento das lutas, a FUNAI, através dos seus funcionários (que atuavam também como informantes) impuseram a “lei” de que indígenas só poderiam sair das reservas portando consigo a autorização contidas nas chamadas “portarias” emitidas e controladas pelo chefe do Posto da FUNAI. Indígenas que não tivessem essa “portaria” e saíssem para participar de reuniões, ao voltarem para suas casas eram ameaçados e muitas vezes punidos com trabalhos forçados nas roças dos postos e/ou prisão. Em geral, essas saídas, consideradas subversivas, eram comunicadas a instâncias da FUNAI ligadas ao serviço de segurança nacional.
Em todo o Brasil, inclusive no sul, para a entrada nas reservas indígenas, missionárias/os do Cimi e agentes da Pastoral Indigenista deveriam portar autorização dada pela FUNAI. O Cimi nunca reconheceu essa exigência, entrando nas áreas a partir do consentimento das comunidades indígenas e suas lideranças. Por esse motivo, quando interceptados pela FUNAI dentro da reserva indígena, eram ameaçados de prisão, apreensão do carro etc. Esta prática continuou acontecendo mesmo depois da chamada abertura democrática – só que com nova versão: a FUNAI com política de cooptação e imposição de caciques, transferia a estes o papel coercitivo.
Vale lembrar figuras importantes, líderes do povo Kaingang como Angelo Kretã no Paraná e Nelson Xangrê no Rrio Grande do Sul (todos os dois já mortos). Foram monitorados, ameaçados e perseguidos. Angelo Kretã, cacique dos Kaingang da TI Mangueirinha e vereador eleito pelo MDB em 1976 em Mangueirinha-PR, foi morto em 1980 em um acidente de trânsito – até hoje não elucidado. Nelson Xangrê liderou a retomada da TI Nonoai em 1978. Ele e sua família sofriam constantes ameaças de morte.
Os postos chaves da FUNAI foram ocupados por militares e a questão indígena era assunto de segurança nacional.
Fórum Justiça- É possível fazer algum paralelo entre a época da Ditadura e o atual Governo Federal?
Sim. Nítido e claro! O atual Governo Federal, assim como o da década de 70, também foi resultado de um golpe. Só que agora com cara legalista, o tal do “golpe brando” que permitiu o impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff.
O anti-comunismo novamente é o discurso usado para amedrontar o povo a manifestar-se pelos seus direitos. As operações de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, apesar de reguladas já na Constituição Federal de 1988, agora passam a ser mencionadas cotidianamente pelo Governo Federal, como estratégia para calar a voz do povo e criminalizar suas lideranças – taxando-as de terroristas.
A família tradicional burguesa é o modelo a ser defendido e seguido.
Os povos originários são chamados novamente à integração à sociedade nacional. Entenda-se entregarem-se à chamada civilização, despojando-se de suas terras, permitindo que sejam exploradas por terceiros. Sabemos que historicamente isto resultou na invasão das terras indígenas. O discurso é que os indígenas têm o direito de serem gente como nós. Têm o direito ao desenvolvimento. A serem civilizados. Isto ocorreu também na ditadura militar, com o famigerado anteprojeto de lei protagonizado pelo Ministro do Interior, Rangel Reis, no governo Geisel.
Por inúmeras vezes o atual Presidente da República afirmou que não vai demarcar um centímetro de terras pra índios, argumentando que o que necessitam é fazer com que as terras que lhes foram concedidas sejam produtivas com plantações extensivas, criação de gado, exploração mineral e por aí vai… Por trás da política de in-en-tregação está, novamente, a política de expansão das fronteiras agrícolas, agora, agronegócio.
O presidente e vice-presidente são militares e há mais de 6 mil militares ocupando cargos no Governo Federal (G1 out 2020).
A FUNAI voltou a ser militarizada. Foi sucateada e sua política não segue preceitos antropológicos. A política indigenista é anti-indígena, seja no tocante à demarcação das terras, saúde, educação escolar indígena, ou economia. Funcionários leais à causa foram afastados dos cargos de confiança e escanteados dentro do órgão.
As normas constitucionais e a legislação indigenista nacional e internacional, as quais o Brasil é signatário, deixaram de ser respeitadas. Hoje a luta dos povos originários não é mais pela conquista de direitos, mas pela manutenção dos direitos conquistados na CF.
Fórum Justiça-Como foi a campanha “Índio: Ame-o ou Emancipe-o”?
Durante a segunda metade da década de 70, o Ministro do Interior, Rangel Reis, do governo Geisel, tentou emplacar um anteprojeto de lei que permitiria a emancipação coletiva de povos indígenas. Dizia que ia acabar com o paternalismo através da integração dos índios à nossa sociedade, desenvolvendo projetos econômicos em suas terras, iniciando pelos estados do sul e MS, argumentando que as comunidades indígenas que aí viviam estavam já “aculturadas” e integradas à sociedade envolvente. Os indígenas receberiam lotes individuais.
Rangel Reis, com a emancipação, pretendia em 10 anos, em suas próprias palavras “reduzir para 20 os 220 mil indígenas existentes”.
O que estava por detrás dessa falsa emancipação era despojar os povos indígenas de seus territórios com a intenção de liberar suas terras para os não-índios explorarem, seja para a agricultura familiar ou industrial, mineração, exploração madeireira etc. O objetivo era integrar as terras indígenas dentro do sistema capitalista (tal qual agora).
A reação de chefes indígenas foi forte, contundente. Reunidos em Assembleias Regionais e Nacionais, discutiam o assunto e posicionavam-se contra a tal da emancipação, através de documentos à FUNAI, audiências com o seu presidente Ismarh de Araújo e também denunciando à imprensa. Mário Juruna, do povo Xavante, em audiência com o presidente da FUNAI, afirmou que os indígenas iriam desaparecer transformando-se em caboclos.
Somando-se em apoio aos povos indígenas, antropólogos, sociólogos, juristas, sertanistas, missionários, estudantes, realizaram encontros emitindo suas posições em manifestos e denúncias à imprensa. Isto aconteceu em várias regiões do Brasil, tendo maior repercussão nas cidades do Rio de Janeiro, Campinas (SP) e São Paulo. A questão indígena acabou por aglutinar e direcionar a insatisfação de setores importantes da sociedade brasileira organizada no apoio à causa indígena. Como um guarda-chuva, abrigou e organizou setores que se opunham à ditadura militar.
O Cimi teve participação decisiva nesta Campanha. Apoiava os chefes indígenas na realização de suas assembleias e ao mesmo tempo, cumpria com seu papel profético de denúncias através de vários meios, sendo o de maior repercussão os jornais, principalmente o jornal “O Estado de São Paulo” e “Jornal do Brasil”. O Estado São Paulo chegou, por mais de uma vez, a questionar, em seu editorial o projeto de emancipação. A CNBB fez nota pública à imprensa criticando duramente o governo. Antropólogos do Museu Nacional manifestaram-se publicamente. Outro Manifesto foi assinado por mais de 150 antropólogos, juristas, missionários e outras figuras proeminentes.
Vale lembrar que houve povos indígenas (cansados de serem explorados e roubados, primeiro pelo SPI- Serviço de Proteção aos Índios e depois pela FUNAI) que se posicionaram num primeiro momento a favor da emancipação. A razão disso foi acreditarem que poderiam ser independentes da FUNAI e gerir eles próprios seu patrimônio. No sul do Brasil, Santa Catarina, isto aconteceu com o povo Xokleng, que, posteriormente devidamente informados, voltaram atrás.
De 1975 a 1978 Rangel Reis buscou incessantemente viabilizar a “emancipação” coletiva dos indígenas. Finalmente, em 1978, dois atos públicos foram como a pá de cal para que o Governo Geisel recuasse. Em 07 novembro, no Rio de Janeiro, com cerca de 700 pessoas e no dia seguinte, dia 08, no TUCA, auditório da PUC em São Paulo, o Ato Público Contra a Falsa Emancipação, reuniu mais de 2 mil pessoas. Chefes Indígenas, antropólogos, juristas faziam parte da Mesa. O Cimi, com seu representante na pessoa extraordinária de Dom Tomás Balduíno, fez parte da Mesa. Missionários do Cimi Sul e de outros regionais participaram. Me lembro bem deste Ato no TUCA. Estávamos presente e foi um fato marcante.
A campanha conhecida como “Índio, ame-o ou emancipe-o” foi uma resposta ao governo federal, numa analogia ao slogans do Governo para as pessoas que faziam oposição à ditadura “Brasil: ame-o ou deixe”. Henfil fez uma charge que foi espalhada pelo Brasil através de cartazes, camisetas, onde se via um indígena com a frase:
“Índio, ame-o ou emancipe-o
Fórum Justiça- O que podes falar sobre a perseguição a quem se colocava ao lado da causa indígena na época da Ditadura?
A questão indígena naqueles governos, em outros governos e, agora mais fortemente e com muitas semelhanças com a época da ditadura militar, o atual desastroso governo Bolsonaro, genocida e ecocida, vem sendo tratada como assunto de segurança nacional.
No caso do Cimi, seus missionários/as eram monitorados permanentemente – creio que agora também o são. A missão do Cimi tem em sua metodologia, entre outras formas de ser e fazer, a convivência com os povos indígenas. Conviver, criar laços de amizade, estima e confiança mútua. Aconteceu, por exemplo, de uma Assembleia de Chefes Indígenas ser invadida pela polícia federal. A PF exigia que missionários do Cimi se retirassem da mesma ou a Assembleia seria fechada. Os indígenas se recusaram a expulsar o Cimi e encerraram a Assembleia. Acho que isto mostra um pouco o porquê da perseguição.
A causa indígena também soa subversiva por conta da autodeterminação – autonomia que estes povos têm direitos, inclusive em legislação internacional. Se formos analisar e interpretar nossa CF veremos que mesmo aí esta possibilidade está presente – digo isto numa interpretação profunda, não superficial.
A autodeterminação dos povos indígenas consta nos objetivos do Cimi já em sua primeira Assembleia em 1975. Autodeterminação, este termo arrepia e soa aos militares e civis conservadores como pretensão de criação de novos estados nacionais, conspiração contra o estado nacional etc… E olha que no Brasil, as sociedades indígenas não apresentam em seus modos de ser esta expectativa e perspectiva. Ter sua autonomia dentro do Estado Nacional Brasil – isto é, que o Brasil reconheça que é um estado pluriétnico e respeite e faça respeitar, através de leis e práticas, as formas de ser e viver desses povos culturalmente diferenciados dentro de um mesmo estado. Para isto é imprescindível a demarcação e garantia de seus territórios com o devido reconhecimento e respeito pelo Estado e sociedade nacional das diferentes formas de organização sócio-política desses povos. Creio eu que este desejo esteja mais próximo do que gostariam os povos originários no Brasil.
Outra questão que pode explicar a perseguição a quem se colocava ao lado da causa indígena na época da Ditadura é a luta por território (hoje é assim também). A palavra território também soa subversiva aos ouvidos conservadores, afinal, para estes, território só existe um, o brasileiro! No Brasil, assim como em outros países na América Latina, a questão fundiária continua sendo um grande problema estrutural de desigualdade. Até hoje, em pleno século XXI, esta questão não está resolvida e o que vigora é a concentração da terra no poder de uns poucos.
Os povos indígenas no Brasil lutam por fatias de terras dentro dos seus territórios, na busca de sobrevivência física e cultural! Lutar por fatias de terra já é na verdade “aceitarem” a cerca que os brancos lhes impõem dentro de seus próprios territórios! No entanto, o fato de os indígenas reconquistarem ínfimas parcelas de terra lhes permite um melhor viver, uma maior possibilidade de crescerem demograficamente e culturalmente – num modo de ser que não é capitalista. Conseguindo êxito nesta empreita os povos indígenas podem ser perigosos exemplos a contestar o capitalismo, a mostrar para a sociedade brasileira que um outro modo de ser é possível. Sabemos que a economia desses povos já foi conceituada como comunismo primitivo – e de fato até hoje, com todos os tremendos impactos que sofreram em suas culturas, podemos dizer que são sociedades organizadas, política, social e economicamente, comunitárias. Isto de fato não é bem visto pelos conservadores.
Os povos indígenas não são capitalistas. Não tem uma relação de exploração com a terra. Muito pelo contrário. A relação é de respeito, interdependência entre todos os seres que habitam a Mãe Terra, a Pacha Mama. Por não lidarem com a terra de forma capitalista, são considerados atrasados. Estereotipados como vagabundos que conquistam as terras e deixam criar mato onde antes eram grandes plantações. E é tudo o que querem mesmo! Já escutei muito esse desejo dos Kaingang no sul do Brasil quando reconquistam um pedaço de suas terras, então toda desmatada: “vamos deixar criar mato e vamos trazer uns casais de bichinhos para se criarem também”. Para um governo capitalista isto é atraso puro – pra que “dar” terra para índio? Há que se destinar para a construção de obras de infraestrutura, mineração, agronegócio. Há que se explorar a terra! Enquanto os indígenas sentem que são parte dela.
Só por essas considerações já pode-se perceber o porquê da perseguição, do monitoramento atento às pessoas que atuam com a causa indígena. Os indígenas devem ser protagonistas, sujeitos de sua caminhada de libertação enquanto POVOS culturalmente diferenciados da sociedade nacional brasileira.
Assim foi na ditadura militar. Por isso os missionários do Cimi eram proibidos de entrar nas áreas indígenas. Para isso haveria que ter autorização da FUNAI, coisa que não respeitávamos por considerar que é o Povo o sujeito de direito, aquele que detém o poder, a vontade de receber quem queira em sua casa. Por fim, a que se enfatizar que a perseguição não era, não é, apenas governamental. Ela vinha e vem, principalmente daqueles que detinham, detém o poder econômico para qual o qual os governantes governam.
Mudar todo este cenário implica construir e conquistar vantagem indígena e popular na correlação de forças com os poderes econômicos que imperam no Brasil.