Nota em Defesa do Modelo Público de Acesso à Justiça
O Fórum Justiça é espaço aberto a movimentos sociais, organizações da sociedade civil, setores acadêmicos e agentes públicos do sistema de justiça que visa discutir coletivamente política judicial com redistribuição e reconhecimento de direitos e participação popular, enfatizando a justiça como serviço público. Em especial, com a pauta de democratização do sistema de justiça.
Viemos a público nos posicionar a respeito do Projeto de Lei (PL) n.º 2.749/2022 que dispõe sobre o “Programa de Acesso à Justiça e fomento ao advogado iniciante” que tramita na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), configurando uma advocacia dativa. O projeto tem como objetivo o atendimento à população hipossuficiente por meio da nomeação de advogados iniciantes em demandas não atendidas pela Defensoria Pública do Distrito Federal (DP/DF), isto é, direcionando recursos e serviços de competência da DP/DF para advogados iniciantes. Assim, com uma dotação orçamentária inicial de R$ 6 milhões, a justificativa do projeto é que a Defensoria não tem capacidade para atender toda demanda recebida, além de apoio aos advogados iniciantes.
Destaca-se que o processo de transição democrática na América Latina possibilitou a criação de arranjos institucionais no âmbito do sistema de justiça que corresponderam a anseios de consolidação da democracia nos diferentes países. Nesse sentido, o fortalecimento da Defensoria Pública enquanto agência vocacionada ao acesso à justiça de pessoas em situação de vulnerabilidade significa investimento institucional na democratização do referido sistema e na defesa dos direitos humanos enquanto pilar essencial do regime democrático.
Projetos que preveem um sistema de advogados dativos fragilizam o direito à assistência jurídica gratuita, não necessariamente pela suposta falta de preparo dos advogados iniciantes (que certamente trazem a inovação e a combatividade típicas do início de carreira), mas pela ausência de um contorno institucional que permita a construção de atuações estratégicas, coletivas, de médio e longo prazo, que possam ter um efeito estrutural na redução de conflitividade. Essa capacidade institucional é o que torna a Defensoria Pública mais eficiente no atendimento das necessidades da população vulnerável. O modelo dativo tem usual foco em demandas individualizadas, com reflexo na busca pela criação de nichos de mercado e de competição que, usualmente, impedem a formação de estofo institucional para a resolução de conflitos complexos. Em muitos casos, esses nichos de mercado passam a buscar a sua expansão, combatendo e deslegitimando, pouco a pouco, o espaço do modelo público de assistência jurídica.
Uma das muitas virtudes da Defensoria Pública brasileira é a presença de práticas de escuta qualificada e permanente das populações vulnerabilizadas, atendidas por meio das suas Ouvidorias Externas, conforme art. 105-C da Lei Complementar 132/09. Dessa forma, diferente de todas as outras instituições do sistema de justiça, a Defensoria possui laço que permite a comunicação direta entre os seus mecanismos de governança e a sociedade, o que diminui as chances de sua captura por interesses corporativistas e colabora para o cumprimento do seu dever constitucional de promover os interesses dos mais vulneráveis, em vez de seus próprios. Esse mecanismo não está presente em nenhum outro modelo de assistência jurídica gratuita e é a maior conquista no campo do acesso à justiça após a criação da própria Defensoria Pública.
Não há que se ter dúvida de que o modelo público foi o escolhido pela Constituição. De acordo com a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso LXXIV, o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Nesse sentido, também a Lei Federal n.º 13.105, de 16 de março de 2015, Código de Processo Civil, estabelece em seu art. 98 que a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. Ressalta-se que em 2009, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar n. 132, que estabelece que “assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública” (§ 5º do art. 4º da LC 132/09).
Cumpre ressaltar que o art. 98 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. Fixou ainda que a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais. Cumpre notar que a DP/DF é uma das mais avançadas nesse quesito, contando com sua presença em 95% das unidades jurisdicionais no seu âmbito, conforme consta no Mapa da Defensoria Pública no Brasil, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Outrossim, nos termos do art. 134 da Constituição Federal de 1988, a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal .
A Resolução 2656, da Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), AG/RES 2656 (XLI-O/11), documento de recomendação soft law, reconhece a Defensoria Pública como a instituição eficaz para a garantia desse direito, sobretudo de pessoas em situação de vulnerabilidade e recomenda a todos os Estados-membros a instalação de Defensorias Públicas dotadas de autonomia e independência funcional. Além disso, a OEA possui diversas resoluções específicas sobre acesso à justiça e Defensoria Pública, são elas: Resolução n. 2.714/2012; Resolução n. 2.801/2013; Resolução AG/RES. n. 2.821 (XLIV-O/14); Resolução AG/RES. n. 2.887/2016; Resolução AG/RES. n. 2908/2017; AG/RES. 2928 (XLVIII-O/18), AG/RES 0794 (XLIX-O/19) e AG/CG doc. 2 (L-O/20).
Diante da complexidade dos conflitos atuais, a mera nomeação de um advogado ou defensor não é suficiente para dar conta dos desafios do acesso à justiça. A Defensoria Pública é uma plataforma estável e estruturada capaz de reunir, no tempo e no espaço, recursos materiais e intelectuais capazes de enfrentá-los. É certamente mais prudente, tanto do ponto de vista orçamentário e sobretudo da eficiência, aplicar os recursos previstos no referido projeto de lei no fortalecimento dessa potente plataforma.
Sabemos que a Defensoria Pública é um pilar do acesso à justiça e que a aprovação do referido projeto de lei não atende ao interesse público e enfraquece a instituição Defensoria Pública, bem como a obrigação constitucional de assistência judiciária integral. Tal situação, além de causar desgaste ao sistema de justiça, prejudica sobremaneira o atendimento das pessoas usuárias do serviço público.
Rio de Janeiro, 27 de maio de 2022.