Seminário com lideranças quilombolas aborda os desafios no acesso à justiça na região Sul
Regulação fundiária, racismo estrutural, o desmonte das políticas públicas e a dificuldade de acesso aos serviços e políticas mais elementares, como água e luz, foram os principais pontos tratados no seminário online “Acesso quilombola à justiça no Brasil e o papel das defensorias públicas – Região Sul”, realizado na última sexta-feira (1/04), e transmitido pelo canal do YouTube do Fórum Justiça (FJ).
Esse foi o primeiro dos seminários regionais que estão sendo promovidos ao longo do ano pelo projeto “Quilombolas e Acesso à Justiça: atuação da Defensoria Pública”. Lançado em agosto de 2021 pelo FJ, pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), Defensoria Pública da União (DPU), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e Conselho Nacional de Ouvidorias Externas de Defensorias Públicas do Brasil, o projeto é executado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em parceria com o Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap).
O encontro foi dividido em dois momentos. O primeiro contou com relatos e depoimentos de representantes quilombolas e assessorias jurídicas populares, relativos à realidade do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná. O segundo momento foi fechado ao público geral para que defensoras/es públicas/os, ouvidorias das defensorias e os participantes do primeiro momento pudessem travar um diálogo direto e interagir de forma mais orgânica sobre o universo de problemas em torno do acesso à justiça para quilombolas.
A interseccionalidade das diversas opressões que atravessam e impactam as comunidades foi mencionada em todas as falas das lideranças. Também foram pontuadas algumas dificuldades de quilombolas de acessar direitos, como a falta de órgãos de Defensorias e do Ministério Público Federal na maioria dos municípios da região e a dificuldade de compreensão sobre as atribuições de cada um dos órgãos competentes e de utilizar as plataformas virtuais desses órgãos.
A união e a articulação dos remanescentes das comunidades dos quilombos são o motor de resistência a tantos retrocessos nos últimos anos, segundo Tereza de Jesus, da Comunidade de Armada, no Rio Grande do Sul:
“Não somos um povo que desiste na primeira pancada, nossos territórios são sagrados e queremos respeito, não estamos pedindo favor, mas um direito que nos foi negado. O Brasil tem uma dívida histórica com os negros quilombolas. Queremos parceiros que venham somar e não nos dividir”.
O coordenador-executivo da articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Biko Rodrigues, chamou a atenção para a intensificação de violações de direitos humanos cometidas contra quilombolas, inclusive com mortes de companheiras e companheiros. Biko lembrou após três décadas da promulgação da Constituição de 1988, que determina a demarcação de terras quilombolas e povos originários, apenas 200 comunidades, entre as 6 mil existentes, foram titularizadas:
“Nesse ritmo, vai demorar mais de mil anos para que o Estado de fato alcance a demarcação de terras quilombolas. Por isso, se faz tão necessário termos os defensores públicos mais perto da gente”.
Roberto Potacio Rosa, presidente da Associação Comunitária Vovô Geraldo, no município de Restinga Seca, região central do Rio Grande do Sul, fez uma retrospectiva da trajetória do movimento quilombola na luta pela titulação de seus territórios e obtenção de direitos básicos assegurados pela Carta Magna.
Ele salientou a importância da participação social na construção de marcos legais importantes, como a ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2002, que tem orientado parâmetros para normas e políticas públicas quilombolas, e na construção do decreto 4887/2003, que regulamenta a demarcação de terras de remanescentes das comunidades dos quilombos:
“Fizemos parte de um grupo ministerial de trabalho e apresentamos proposta de um instrumento que nos permitisse tornar eficaz o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Ana Maria Santos, da comunidade de Paiol de Telha, Centro-Sul do Paraná, lembrou do esforço coletivo para combater a invisibilidade das comunidades quilombolas em seu estado:
“Aqui existem 38 comunidades certificadas, isso se deve à mobilização dessas lideranças, pois não há vontade política nesse sentido”.
Dentre as propostas feitas na reunião, foram sugeridas a realização de visitas às comunidades por parte das Defensorias a fim de conhecer os locais e realizar capacitações sobre o acesso às plataformas digitais e o passo a passo para encaminhar demandas.
O próximo seminário terá como enfoque a Região Centro-Oeste e está previsto para ocorrer em maio. Os debates irão municiar a pesquisa, que está sendo executada pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais, Ameríndios e Afroamericanos (LaPPA), do IFCH/UNICAMP.
O estudo busca produzir um amplo diagnóstico nacional com base nas seguintes frentes de investigação: aplicação dos questionários para defensoras e defensores de todo o Brasil que tenham tido contato com as demandas quilombolas, análise de notícias de documentos institucionais e das jurisprudências estaduais e federais, entrevistas e seminários regionais.
O professor da Unicamp José Maurício Arruti, coordenador do projeto, destacou que o debate busca criar uma interação da pesquisa, que está em curso, com as lideranças quilombolas para que o estudo seja mais dialógico, inclua um ruído produtivo e necessário de vários diálogos e pontos de vista:
“Queremos devolver, de alguma forma, alguns elementos que começamos a reunir na pesquisa e também contemplar uma forma de interação com todos os atores que fazem parte do universo pesquisado”.