Estados do Nordeste Encerraram Ciclo de Seminários Regionais do Projeto “Quilombos e Acesso à Justiça: Atuação da Defensoria Pública”
Em novembro, foi finalizado o ciclo de seminários regionais do projeto “Quilombos e acesso à justiça: atuação da Defensoria Pública” [1], que teve início em abril e percorreu todas as cinco regiões do país. No dia 11/11 (sexta-feira), por meio da plataforma Zoom, o encontro reuniu lideranças de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe, além de defensoras e defensores públicos, advogados populares, pesquisadoras e pesquisadores. Neste último encontro, a mediação ficou com as pesquisadoras Juliana Sartori e Ana Carolina Silva.
Iniciando o diálogo, o coordenador da pesquisa, José M. Arruti, fez um panorama do projeto e da conjuntura política do acesso à justiça por quilombolas. Destacou a mudança no tratamento do Governo Federal e demais instituições públicas dado às comunidades, iniciado em 2016 e reforçado em 2018, que afastou esta população do acesso às políticas públicas, aumentando os processos de judicialização por parte das comunidades na busca da efetivação dos seus direitos. Antonio Criolo (coordenação executiva da CONAQ) afirmou que a atitude de acionar o poder público foi tardia e pontuou que se existem leis, deveriam ser cumpridas, mas o que acontece é uma enorme dificuldade na implementação. Também reforçou a importância do encontro, pois é necessário diminuir essa distância entre Defensorias Públicas (DPs) e comunidades quilombolas, e reconheceu que os/as defensores/as exercem papel muito importante na efetivação das leis e políticas públicas.
Pernambuco
Não diferente de outras regiões, as comunidades quilombolas no nordeste vêm enfrentando graves violações de direitos, principalmente o de consulta livre, prévia e informada, ataque de milícias e de forças a serviço de grandes empreendimentos. Em Pernambuco, a liderança Edna Andrade relatou que as comunidades da região têm o Defensor Público da União, André Carneiro, como aliado na luta pelo território e pela garantia do direito de escuta às comunidades. Outro ponto, também destacado em outros Estados, é a luta pela educação escolar quilombola. De acordo com Edna, em muitos municípios as crianças estão sendo retiradas do território para estudar na cidade, às vezes muito distantes. Mario dos Santos, destacou que apesar da proximidade com a DPU é importante a aproximação com a DPE, pois muitas violações se dão na esfera municipal. Por exemplo, as vacinas para COVID-19 não chegaram e, em muitos casos, não tinham informações de como demandar isso. Sobre a demarcação e titulação de terras, há seis RTID (Relatório Técnico De Identificação e Delimitação) para finalizar e publicar, e o Estado alegou falta de recursos. Mario também perguntou o que as DPs podem fazer para avançar com esses processos e sugeriu reforçar laços entre DPs, comunidades e poder público, talvez por meio de uma câmara temática quilombola.
Sergipe
Em Sergipe, Wellington Quilombola, como é conhecido, comentou que as comunidades têm tido experiências positivas como o Ministério Público Federal e com a Defensoria Pública. O MPF, principalmente, esteve muito presente na época das vacinas, ocasião em que foram remanejadas de acordo com a vontade da Secretaria, quando chegavam ao município. Mas a demanda é muito grande para a capacidade da instituição. A liderança também destacou a diversidade dos territórios e com isso das necessidades e pontuou que seria positivo ter uma comissão específica para monitorar as ações de garantia de direitos. A falta de educação escolar quilombola também foi mencionada e a necessidade dos quilombolas ocuparem os espaços institucionais. Trouxe para reflexão o fato de não estar em prática a possibilidade de concursos públicos para quilombolas atuarem nos órgãos e instituições no seu município. As escolas quilombolas estão sendo ocupadas por pessoas não quilombolas. Outro ponto é a distância entre MPE e MPF, essas instituições precisam trabalhar em parceria.
Bahia
Na Bahia, se destacou a necessidade de alinhar o diálogo com a DPE nas áreas de segurança, saúde e educação. As violações de direitos ocasionadas pela instalação de parques eólicos em territórios quilombolas foi mencionada, nos lembrando do importante debate sobre uma transição energética justa. A liderança José Ramos de Freitas, comentou que não há diálogo no processo e o direito à consulta livre, prévia e informada é negado. Outra problemática diz respeito a regularização fundiária pelo estado, estão com muita dificuldade, conflitos e as lideranças não sabem onde buscar apoio. A falta de segurança é marcante e a impunidade pelos crimes cometidos. O território é essencial para a existência e sobrevivência da comunidade, para garantia da sua soberania e capacidade de produção alimentar. Maria Bernadette, concordou que a educação quilombola está esquecida mas a saúde também, e relatou a dificuldade em conseguir a vacina. Pontuou a importância da religiosidade e a discriminação que os quilombolas de religiões de matriz africana têm sofrido.
Alagoas
Já em Alagoas, Genilda Silva comentou que as leis beneficiárias para quilombolas não são efetivadas, é preciso da atuação da DPE e do MPF. Na área da saúde, não há acesso adequado, apesar de já terem realizado denúncias. É preciso que as instituições escutem mais as comunidades.
Propostas e Atuação das DPs
A professora Márcia Guena dos Santos, de Juazeiro/BA, complementou o debate comentando um pouco da sua atuação com as comunidades quilombolas no Vale do São Francisco. Contou sobre a criação da Articulação Quilombola, que reúne comunidades quilombolas e professores universitários e intervém no poder público municipal e DPE, em particular com o defensor Marcelo Galvão, para conseguir a garantia de alguns direitos.
A Defensora Pública, Kamile Alves, fez o panorama da ampla atuação extrajudicial da DPE/BA com as comunidades quilombolas de Boa União, pela comarca de Alagoinhas. Para auxiliar a comunidade na questão territorial, em um caso de escravidão moderna, a DPE atuou na regularização de terras de algumas pessoas, a partir da atuação junto com a prefeitura. Kamile pontuou que as MPEs podem procurar as Secretarias de Infraestrutura e pedir para os engenheiros realizarem a análise do terreno de forma gratuita para a DPE. Também destacou a importância da Ouvidoria Externa. Kamile ressaltou que é importante que as lideranças participem ativamente neste espaço, ponto reforçado pelo defensor Gilmar Silva. No caso da DPE/BA, colocaram as lideranças dentro do grupo operativo da Ouvidoria.
No problema de acesso à água, relatou que a DPE/BA conseguiu articular com o órgão responsável pela distribuição, fazendo uma reunião com a comunidade. Além disso, também forçaram o município e a autarquia a ofereceram tanques de água para as famílias conseguirem abastecer o suficiente com o carro pipa. Na pauta da segurança, após constantes assaltos a comunidade, a DPE/BA escutou a comunidade e a partir da demanda do policiamento diário no território, fizeram a mediação entre a comunidade e a polícia, que agora atua na região. O resultado foi muito positivo, reduzindo drasticamente o número de assaltos. Além disso, inseriu as comunidades quilombolas no Conselho do MP, que fiscaliza a segurança pública. Na saúde, fizeram uma parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e criaram uma Câmara de Conciliação, em que se estipula um prazo de cinco dias para atender a demanda do assistido.
Atuando de forma mais judicial, Gilmar Silva trouxe para a discussão a colaboração da ouvidoria e a regional no problema da insegurança hídrica nas comunidades de Vitória da Conquista. Na questão do acesso à terra, atuam nos processos judiciais nos casos de terra devoluta. Por fim, pontuou que há um projeto para criar um núcleo especializado.
O Defensor Público Federal, Marcelo Pontes Falcão, citou a limitação da estrutura das DPs, com poucas unidades e poucos/as defensores/as para atuar em demandas coletivas, e sugeriu que as lideranças procurem a DPU e a DPE. Também pontuou que a DPU está em diálogo com o grupo de articulação quilombola da Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro, e que atuaram pela via judicial na proteção do território quilombola de Alagadiço. Também atuaram para garantir o acesso à água da comunidade de Serrote/PE, e estão lutando para garantir acesso à energia elétrica para a comunidade de Lagoinha/BA. Pontuou que não é o suficiente. É preciso ir além dos esforços individuais, é necessário o interesse governamental.
Juliana Paranhos, defensora da DPE/PE, relatou a atuação recente como representação da Associação Quilombola de Conceição das Criolas e firmou o seu compromisso e disposição em se aproximar das comunidades.
Como apontado por Arruti, o seminário foi muito importante para o reconhecimento recíproco, aproximou a comunidade das DPs e elas das comunidades e suas demandas, apontando caminhos de atuação. Também foi importante para percebermos como há um desconhecimento das atribuições das instituições do sistema de justiça, afetando diretamente o próprio acesso à justiça. Além disso, foi positivo para identificar bons exemplos e trocar experiências de atuação, principalmente com papel mediação da DPE em ações extrajudiciais. O pesquisador também destacou a importância de pensarmos a construção de uma instância de compartilhamento de know how que facilite a colaboração nas ações, envolvendo as comunidades, organizações da sociedade civil, DPs, ouvidorias e demais instituições envolvidas.
Para Vinícius Alves, membro fundador do FJ, a metodologia utilizada nos seminários nos fez aprender muito e provocou um diálogo em pé de igualdade entre os atores envolvidos, fugindo da hierarquia, algo que o FJ busca na sua atuação. Além de levantar muitos dados importantes nessa pesquisa-ação, nos faz pensar o direito para além dos processos judiciais, como um instrumento multidisciplinar, rodeado por várias epistemologias e cosmovisões e que contribui para a gestão social e implementação do direito. Entendendo a importância da religiosidade, conflitos históricos pela terra e dos costumes das comunidades que têm juridicidades relevantes. É importante que os defensores/as entendam isso e manejem ferramentas plurais, e para isso precisam ir para as comunidades.
[1] O projeto está mapeando ações judiciais e extrajudiciais das Defensorias Públicas junto às comunidades quilombolas. A pesquisa é coordenada pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais, Ameríndios e Afroamericanos (LaPPA), do IFCH/UNICAMP em parceria com o FJ, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), a Defensoria Pública da União (DPU), o Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro-Cebrap), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Conselho Nacional de Ouvidorias Externas de Defensorias Públicas do Brasil.